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Solilóquio 9 - "Dilema", de Alda Merini


Solilóquio 9 – Dilema, de Alda Merini






“Este triste senhor da dúvida encantou as plateias com um discurso que não tem nenhuma lógica, uma assonância, uma felicidade interior.


“Hamlet não tem dúvida, tem certeza, mas daquele homem de pensamentos que é, um pávido como todos os poetas, se faz parecer incerto. Desorienta os inimigos, surpreende-os, e, no entanto, se corrói na indignação.


“Mas o que é a loucura de Hamlet senão um enorme complexo de Édipo que o pressiona a perseguir o seu único amor, a irromper sobre cenas como um cão raivoso e privado de fome verdadeira.


“Hamlet não é oprimido por um destino desfavorável, a ele bastaria calar-se e fingir-se de ignorante para se deixar à sorte. Mas ele quer lutar contra os espectros de seu pensamento. Não é sua mãe que combate, não é o padrasto e nem mesmo a sua loucura, da qual há obtido grande comprovação.


“Hamlet luta contra os seus demônios, e essas figuras, essas vinganças não são voltadas aos outros, mas àquilo que o perturba. Ansiedade ou linguagem celeste? Hamlet, que se dirige às muralhas para encontrar o seu próprio suspiro, vai em busca de quê, se não da própria vaidade, a própria glória e a própria desonra? Mas é então verdade que a glória é desonrosa e que a desonra é glória?


“Pode ocorrer, às vezes, que esta contradição alegre exulte ao ponto de expulsar o intelecto dos outros. De devir teatro. Mas poderá um dia um gênio expulsar sozinho as vinganças das ações? Hamlet sabe que não pode. E por isso escolhe matar, porque não há outra solução.”


Alda Merini


Como artista, tenho medo de agir igual a Hamlet. E não o digo nos sentidos monárquico ou da intensidade — me refiro à maneira de agir como se duvidasse, munido de certezas. À parte o coloquialismo curioso de repetir sempre “sei lá” ao final de sentenças em que acredito, me pergunto em que medida deveria aceitar o que já tenho por certo. Quando me perguntam em quê acredito, respondo sempre que duvido. Mas, a me colocar como o duvidante, me destituo do direito de afirmar algo além da dúvida.


Talvez valha retroceder: meus primeiros textos tinham sempre títulos latinos. E os tinham porque era eu quem os dava. Gostava da ideia de — uma vez que não teria identidade visual ou persona pública — me identificar como o cara dos textos com título em latim. À parte o apreço pela língua e a ideia de que é antecedente à própria linguagem impressa nos livros, achei que seria uma boa jogada de marketing. Achei não: decidi.


Mas as decisões levianas tendem a envelhecer mais depressa, e não como um bom vinho, mais como um comentário ofensivo ou um péssimo relacionamento. E assim me vi intitulando “CONIECTURA” um romance que poderia muito bem se chamar pura e simplesmente “Conjectura”. Era uma besteira minha: sempre que era preciso simplificar, simplificava complicando. Ao falante do português — e de qualquer idioma contemporâneo, salvo, talvez, o romeno —, um título simples em latim é, antes de simples, latino, e, portanto, a priori já exclusivo a uma parcela dos possíveis leitores.


Sejamos francos: já é difícil esperar do leitor que leia qualquer coisa fora do telefone; depois disso, que use um dicionário — mesmo podendo fazê-lo sem algum esforço, por comando de voz, no próprio telefone —; e muito menos que se preste a buscar a tradução de um título em latim. Para esse tipo de coisa, há sempre um vídeo do gênero “quem foge mais rápido, o meu leitor ou o flash?”


Como artista, ainda, me descobri desesperado na missão de salvar aquilo em que quisera acreditar outrora, ao invés de ouvir o que sei e prego, e agir a partir do que sinto. Falso profeta. Não fosse eu tão afeito à metatextualidade, talvez precisasse de alguns anos de terapia para resolver o que uma linha de tinta fez por mim: como Hamlet o soubera, eu o sabia — matar era a única solução.


As ações têm suas vinganças, que ousamos reduzir à palavra “consequências”. As consequências de me apegar à ideia das entrevistas anônimas, mesmo testando e obtendo similares e preocupantes resultados, confluíram à amarga certeza de que a maioria das pessoas desconhecidas simplesmente não valem a pena conhecer. E não o digo amargurado ou ferido — é uma faca de dois gumes. Não há nada que eu possa fazer a quem ainda não se descobriu falso profeta.


E então entrelaçam-se o príncipe Hamlet, o artista e as falsas profecias. Se ouso afirmar que o mensageiro é também a mensagem, mesmo tendo a certeza de que tenho minhas frágeis certezas, me encurralo entre duas sentenças de morte com renascimento — e uma delas tem que morrer. Finjo não saber qual.


O assassinato: ao invés da dúvida ou da certeza, suicido o eu-Hamlet-artista limitado a só uma das duas opções. E, ao surpreender a plateia com meu artifício, sou ainda em morte o mesmo eu-Hamlet-artista, que para sempre vive e morre do mesmo dilema e da mesma solução.


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E-mails em: anonimatosmanifestos@gmail.com


Algum Lucas.



Referência:

MERINI, Alda. La vita facile. Bompiani: Firenze, 2018. Tradução minha.

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