Solilóquio 6 - Saudades
Saudades de quando escrevia só porque me viera a vontade. E não é que isso não se passe mais, é só que, hoje, tendo aceitado minha posição, costumo buscar um “algo a mais” para imprimir no papel que sujo de tinta. E não é também como se eu fosse lá um super qualquer coisa. Acontece que, com a ideia de uma profissão, vêm junto algumas questões parasitárias, de cunho financeiro e mercadológico. Ouvi dizer ontem mesmo sobre um pintor que trabalhava o dia todo como vendedor de seguros e se recusava a viver de sua arte por acreditar que, uma vez dependente dela para pagar as contas, teriam controle sobre ela. Não posso dizer que está errado.
Mas me encontro aqui. Já ganhei, em oito anos, o quê? Quase uns quinhentos mangos, no máximo. E isto me diz também o quê? Nada. Conto o tempo como se, de início, escrevesse a tentar pagar as contas. Recém me tornava um adulto — ao menos legalmente —, e escrever para mim era só o que mais gostava de fazer, ao lado de noites ubriacas e manhãs — e meios-dias — de arrependimento.
Que razão tenho em dizer que não tenho razão? Que motivo tenho para vincular um texto ou fala em que pura e simplesmente reclamo de me exigir algo mais do que só a coisa-em-si? Prazos. Crio prazos para mim mesmo e, por isso mesmo, fico, eu mesmo, a esmo, à revelia dos impeditivos que erigi para simplesmente não... o quê? Ficar feliz demais? Não alcançar a harmonia? Ou apenas ter como dizer que na verdade gostava era de fazer silêncio e não dizer mais nada?
Se este solilóquio existe, é porque quero construir uma plataforma. Mas, igualmente, se existe é porque não aceito os meus próprios termos para construí-la, mas os do mundo.
“Impose ta chance, serre ton bonheur et va vers ton risque. À te regarder, ils s’habitueront.” Impõe tua sorte, agarra tua felicidade e segue na direção do teu risco. Te vendo, eles se habituarão – René Char.
E talvez seja só isso mesmo. Talvez seja o caso de eu abolir os prazos aqui. De eu criar e apresentar de maneira distinta. À volição do eu que cria porque sentira a necessidade de criar. E não falo de necessidades mercantis. Aqui mesmo, na frequência de publicação. Faço muito mais do que o que lanço na frequência que lanço. Mas, uma vez que escrevo, sonorizo e edito três solilóquios em uma semana, passo outras três sem persegui-los, porque, em última instância, me convenci de que “o trabalho da semana” já estava feito.
Sempre gostei da minha proficuidade, do meu modo de fazer a jatos — a pulsões. As ideias se expandem e, após seus limiares, retraem-se de volta à cabeça para que possam mais uma vez se expressar. Talvez demasiado bigbangiana a minha analogia, mas me basta.
De toda a arte que já vi, a que amo é a despropositada. E não o digo em termos de carga política ou de ausência de significados. Apenas no sentido em que essa arte é o que era, porque assim o quiseram, e não porque o exigiram o editor ou o público ou simplesmente as convenções coetâneas.
Quero fazer as coisas do meu jeito — e sei que vou correr os meus riscos. Afinal, são as minhas coisas, e as consequências e os prêmios quem receberá — ou não — serei eu mesmo.
“Vós toda causa atribuis somente aos astros, como se tudo fosse movido por eles necessariamente. Se assim fosse, estaria em vós destruído o livre-arbítrio, e justo não seria ser premiado o justo, e o mau punido.” – Purgatório XVI 64:69 – Dante.
Na adolescência, eram estes os meus versos prediletos. Sempre soube que teria de escolher e arcar com as consequências. Mas falo aqui como se cometesse atrocidades. Como se ofendesse quando, em verdade, perjuro. Jurei, e sem ainda ter sequer feito a escolha, impor, àquilo que me é sagrado, uma frequência mundana. Profano justamente aquilo que eu mesmo sacralizei.
Como se não fosse o bastante, penalizo a mim mesmo e só. Não há porque não publicá-los aos montes ao invés de racionados, como se vem fazendo. Quem ganha com isso? Não dependo de algoritmos — e, se assim fosse, lutaria para subvertê-los.
Que a arte tenha seu ritmo e suas pulsões, e que para falar comigo mesmo não me seja imposta a agenda do mundo. Imagino vir daí a ascensão da meditação. O problema é atingi-la através de um vídeo, de um app... O mundo vai como é, e será como sempre foi. Nós é que mudamos.
Como falava já de início, resisto ao ímpeto de engravidar este texto de falsas intenções e de palavras de autoajuda. Tenho pouco a ganhar se finjo aderir aos moldes do outro. Sei bem o que o mundo espera do artista, mas sei ainda melhor de onde vêm as boas intenções do mundo. Conheço muito da filantropia fiscal e do trabalho voluntário que cai bem no currículo. Sei bem como é que se constroem as vidas dos bem-sucedidos e de grandiosos — e falantes — cidadãos de bem. Mais do que isso, sei quem sou e tudo aquilo que jamais serei. Só me falta saber dizer que isto me basta.
Resisto, também, à narrativização da vida como fases, como ciclos, como processos. Narrativizar facilita a narração, mas não resolve o que se passa no âmbito do sentir. Explicar o que se passa em termos quaisquer não vai resolver em mim o conflito que sinto. E, nisso tudo, pouco importa se eles virão. “Construa, e eles virão”. Preciso me concentrar é na construção. “Construa — são.” Tenho a sorte de ainda não ter feito dinheiro o suficiente para me ver encurralado na posição de quem não mais pode recusar um prazo ou uma publicação. A narrativa corrente é de que os idealistas pagam caro, mas ninguém parece dizer isto da religião. Por isso, me muno da escrita como prática espiritualizante, como dogma de vida e meio de ascensão. A bem da verdade, sempre quis ser um homem religioso. Me realizo, então: na espiral turbulenta do mundo no tempo, paro em pé, austero, com a palavra na mão.
E-mails em: anonimatosmanifestos@gmail.com
O site, AlgumLucas.com
O jeito de apoiar diretamente, @anonimatosmanifestos ou @algumlucas para assinar a partir de R$2,00, no picpay.
Até breve.
Comments