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Solilóquio 2.1 - Compensação e Dona crítica, de Alcides Villaça

Atualizado: 31 de jul. de 2020




Compensação

Para os autores,

os livros de autoajuda

trazem uma grande vantagem externa

aliás implícita.

Já os autores

de livros de alquimística

sabem a metamorfose em ouro

da pura titica.

Minha esperança:

a lírica

anímula vagula blandula

dirá às senhoritas

que meu interesse é praticamente desinteressado.



Dona crítica

A senhora não se avexe:

diga que sirvo pastiche

com molho de escabeche

e sorvo tudo em pistache

numa poção de dervixe.

É justo que me esculache

se tenho tão pouca ficha.

Eu mesmo faço capacho

dos versinhos que remexo.

Quanto ao ptyx... vixe!

não tenho concha que feche

nem esmeril que me lixe.

Como a senhora bem sabe,

hoje em dia está dificílimo ser original.



Alcides Villaça


Solilóquio 2.1: Compensação e Dona crítica, de Alcides Villaça

Pensei que, para começar bem a nova temporada de solilóquios, nada melhor do que estes dois poemas de Alcides Villaça. Em primeiro lugar, porque em “Compensação” fala-se não só dos autores, mas deles em relação a seus gêneros e o que recebem ou esperam em troca. Eu, portanto, como já disse outras vezes, “filosoeta wannabe”, me resigno agora a também partir das páginas sujas de tinta aos vazios sonoros da internet, porque entendo muitas vezes o podcast como a ágora de quem não sai de casa.


Então, se não escrevo autoajuda, embora espere que nas Travessias e Diálogos, muito mais do que aqui nos Solilóquios, o ouvinte-leitor possa tirar algo de proveito para sua vida, não o faço na mesma medida em que espero transformar titica em ouro — apesar da cruz de Flamel que trago na pele, a alquimia para mim não passa de semântica do encanto.

E, embora não tão monumental como Alcides Villaça, almejo também que a lírica que busco imprimir em tudo aquilo que faço, embora muitas vezes fracasse, seja capaz de delimitar “às senhoritas” as silhuetas do meu interesse — este talvez ainda um pouco menos desinteressado do que eu o gostaria.


E por que começar já assim, em tons de desculpa? Não é que não me sinta à vontade para falar de poesia, muito menos para escrevê-la — é o espaço em que mais me sinto à vontade, à parte talvez os espasmos ensaísticos que me acometem vez e outra. Começo assim, sub-repticiamente (palavrinha híper coloquial), porque sei bem do mundo em que habito, das expectativas do outro, do que se espera do artista. Falaremos disso dentro dos próximos meses nas travessias, e eu definitivamente entrevistarei outros artistas para tentar fisgar deles respostas que não gostariam de me dar.


A verdade é que eu não tenho grandes problemas nem com a autoajuda, nem com os alquimistas — tendo é a ter problemas comigo mesmo. Por que seria melhor um desinteresse desinteressado? Talvez por acreditar que a crítica espera uma originalidade aos moldes xyz da raiz de delta, como menciono em breve, do poema “Dona crítica”?

Euzinho, como anônimo em público, pouco me incomodo com a crítica que recebo, até porque sempre caio nos moldes modernistas, se de um texto bem-humorado; ou clichezoides, se de um texto formatado, formal. O espaço que encontrei, neste nosso mundo personalista, foi o da vulnerabilidade completa. Aqui, quem vem contra um texto ou programa meu sente vir diretamente contra a minha pessoa, por mais que eu me esforce para distanciá-los — o eu e o texto. O resultado é que a crítica inexiste, porque é muito mais saudável viver na própria bolha. E eu sigo intacto. Tanto sem leitores quanto sem crítica e sem contato.


E eu preciso admitir que não é nem isso o que me deixa pulgas atrás da orelha (expressão que me dá coceiras só de pronunciar) — me incomodo só de não tirar da arte nem o ouro que tiram os alquimistas, nem as vantagens externas que conseguem os autoajudantes. Vou ficando murado num mundinho de lirismos e excertos filosóficos, ora meus, ora de outros, que fazem, sim e definitivamente, a minha vida mais feliz — mas não o faria também um iate, prêmios literários e um bom café com amigos em Copenhague?


Brincadeiras à parte, gostaria de retomar agora dois versos do segundo poema: “É justo que me esculache,/ se tenho tão pouca ficha.” (E vou deixar de lado aqui muito da cacofonia que adoro no texto, para focar naquilo que quero dizer a partir dele) Eu, como imberbe rapaz que nem trinta anos de idade ainda foi capaz de completar — minha meta atual é superar a estatística e passar dos vinte e sete —, gostaria muito de evitar estes tipos de convívio universitários até na minha vida artística. Sinto que nunca vou conseguir fugir dos lattes, capes, beijos e likes que fazem reféns os serumaninhos contemporâneos. Pois posso eu mesmo fugir deles, mas nunca interagir também com quem por eles não tenha sido afetado.


E é nesta altura do campeonato que começo a me sentir plagiador: não só dos discursos do mundo, mas de mim mesmo. Quantas vezes já não li, escrevi e reli palavras nos moldes “likes são ruins, o mundo digital é uma bad”? Nos últimos dois anos, chutando baixo, pelo menos quinhentas. E de que me adianta repetir esse tipo de coisa quinhentas vezes, em dez, quarenta ou cento e oitenta páginas, se o que se absorve deve caber em cento e quarenta caracteres? E eu sei, eu sei: tamanho não é documento, o importante é saber usar. Mas por que sentimos então que tanta coisa falta? E quem sentimos? Eu e você, ou os meus versinhos e eu?


Que resta descobrir da grande alma poética humana e dos mistérios do ptyx de Mallarmé? Se grande parte da vida gira em torno de evitar encoxadas no metrô e de ir atrás de bebidas que descem redondo, de que adiantam as mais belas, ou nem isso: o centésimo verso mais belo do mundo, se há, já antes mesmo de nascermos, mais Literatura e Arte com letras maiúsculas do que seremos capazes de conhecer durante uma vida?


Tudo isso me soa tão bobo e artificial... Qual o problema de ensinar outra vez ao leitor os porquês de arrumar a cama logo cedo e boas maneiras de organizar a rotina com canetinhas coloridas? Que mal tem em fazer sonhar com magia, se com o impossível mesmo sonhamos nós, os pseudoliristas conscientes que, não tão subconscientemente quanto gostaríamos, passamos os dias sonhando com a completude que nos trarão os elogios dos outros?


Quantos artistas não cultivam antes de dormir todas as noites ilusões grandiosas de satisfações inalcançáveis como prêmios — ou o reconhecimento dos pais?


“Eu mesmo faço capacho/ dos versinho que remexo.” E como faço... Nos primeiros solilóquios mesmo, os de teste, deixei marcado para que não ouvissem os dois primeiros. E assino embaixo, são realmente muito inferiores aos subsequentes, pois tinham propósito demais, eram testes, saíram como saíram por falha minha, inexperiência. E não é justamente isso que os faz valiosos? Pra história dos solilóquios, talvez, mas pra mim...

No Atlas, minha antologia de poemas, traço justamente o meu percurso lírico, e o que tive de fazer para justificá-lo foi narrativizá-lo de maneira a dar sentido aos simples fatos: começa-se sempre do início. A vida não tem in ultima ou in media res — parte-se sempre do início da coisa. E eu, aqui, neste novo início de temporada, só queria começar me afirmando consciente — tanto do novo início quanto da impossibilidade do fim. Nada nunca acaba, na mesma medida em que tudo está sempre a recomeçar.


E neste recomeço mais palatável, sintético, limito as partes pelo todo e me prostro às oscilações do gênero: não vou exigir forma dos pensamentos que me causa a poesia dos outros. Para este episódio, portanto, gostaria de me encaminhar ao encerramento com a questão da originalidade.


Hoje, muito pouco do que se faz — ou do como se pode fazer — é passível de ser chamado “original”. Talvez por isso mesmo usem tanto “genial” para adjetivar aquilo que gostam: “que gênios, apesar do reboot, conseguiram fazer algo novo!” E o novo, como disse mais cedo, tende muitas vezes a se limitar à expressão de si. Acredito eu que isto se dê em nome de nos sentirmos sempre tão diferentes dos que vieram antes de nós quanto o fogo se sente do ar. Mas, tal qual fogo e ar, não passamos do resultado das combustões de suas vidas, não somos senão espasmos de eus que existiram a partir do esvaimento de nossos antepassados (frase que parece ser muito mais do que aquilo que realmente é: somos intrínsecos — e só). Se esse “si” é, então, “super” diferente, o velho que a ele se direciona é novo, e, como novo para mim que é, o chamo original.


Mas daí surge também a questão da originalidade: que mérito tem? E agora é moda dizer “copie como um artista” e blá blá blá. A realidade, contudo, é diferente: o filme “original” ganha aplausos de pé enquanto a milésima versão da mesma comédia romântica ganha os cinemas do mundo, os milhões do povo e os corações de serumaninhos jovens e não-tão-jovens-assim.


Nesta encruzilhada, outra vez, releio o poema para ver se chego à minha mais-do-que-óbvia conclusão.


Dona crítica

A senhora não se avexe:

diga que sirvo pastiche

com molho de escabeche

e sorvo tudo em pistache

numa poção de dervixe.

É justo que me esculache

se tenho tão pouca ficha.

Eu mesmo faço capacho

dos versinhos que remexo.

Quanto ao ptyx... vixe!

não tenho concha que feche

nem esmeril que me lixe.

Como a senhora bem sabe,

hoje em dia está dificílimo ser original.


Alcides Villaça

Se, anônimo, me manifesto num mundo repleto de um mesmo eu que se quer original, sou suficientemente diferente para me fazer vulnerável? E, além disso, me fazer vulnerável seria o suficiente para me sentir — ou melhor: me existir original?

Espero respostas em anonimatosmanifestos@gmail.com

Até semana que vem.



VILLAÇA, Alcides. Ondas curtas. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

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