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Solilóquio 14 - Batman

Atualizado: 24 de nov. de 2022




Solilóquio 14 - Batman


Impossível me conter: sempre que vejo um homem adulto, com ou sem all-stars, vestindo uma camiseta do Batman, com um batsinal ou até um action figure do homem morcego como enfeite de cenário em canal de opinião do youtube, só consigo pensar uma coisa — que é esta pergunta: como pode?


E não o digo por desafeto ao herói, nem com o intuito de desacato às autoridades culturais da Disney — muito pelo contrário, sempre me diverti com os filmes do vigilante noturno, mesmo que, quando verdadeiramente li quadrinhos, me interessasse exclusivamente pelos com dinâmicas de grupos: Vingadores, Jovens Vingadores e X-Men. Meu humilde “como pode?” surge da dúvida genuína: será que nunca refletiram sobre, mais do que o que é, mas o que representa o Batman?


Da minha parte, sei muito bem o que me encanta nas personagens às quais me apego: se não pelo poder avassalador que têm de fazer exatamente aquilo que querem, pela noção de dever que demonstram ou o apego aos preceitos e valores aos quais aderiram durante a vida. Por bem ou por mal, heróis ou vilões, me encantam os paladinos, personagens com uma ética inflexível, consciente e cinza — complexa. E de modo algum aqui desmereço as complexidades que se pode encontrar nas histórias do morcegão. O ponto é que ele, ao invés do cinza supracitado, evoca um preto absoluto, muito mais capacitado para a geração de contrastes do que para uma progressão humana.


Bruce Wayne, o homem por trás do manto, é um herdeiro com recursos ilimitados, intelecto impecável, intuição afiada, corpo treinado e sex appeal de dar inveja. Não sei se aqui já se explicita o suficiente, mas para mim é evidente o que ele simboliza: poder — e um poder brutal e absolutamente masculino. Resta uma área, porém: a violência como solução prática. Entra em cena o vigilante.


À parte a clara fantasia de poder masculino que a figura do magnata permite, o herói vem para complementá-la e blindá-la em duas frentes principais: as violências interna e externa. O Batman, em uma linha, é um homem adulto que, para não enfrentar seu trauma, enfrenta o crime. Tudo na personagem é unilateral: da ação à inação. Nas cenas em que está com suas modelos de enfeite, pode até supor-se que durma com elas, mas jamais que compartilhe emoções humanas. Bruce Wayne é um homem frio e calculista, quase um sociopata — o sonho de todo garoto inseguro, incapaz de esconder suas fraquezas.


Quando cai a noite, talvez pelo peso da solidão, ou por doutrinação technoninja marciana — a depender da edição, é claro —, o homem vira a lenda, ora acompanhado de um colorido garoto circense, ora de uma parceira vestida à guisa de sombra, e Batman protagoniza um batmundo, da batcaverna à Batmulher e, como um batrangue, retorna à origem de Batmóvel. Como um maelstrom no mar, Batman é o vórtice em torno do qual gira o seu mundo — que, por sua vez, está fadado a ser engolido à força.


Como personagem, Batman é uma ferramenta. E isto não é demérito algum. É incrível que o mundo seja personagem em suas histórias, e é fantástico que seus antagonistas, como o recém-adorado Coringa, sejam suas versões coloridas e ainda mais distorcidas. A mesma receita: um pot-pourri de arquétipos e características absolutas, acrescidas de símbolos visuais distintos. As narrativas que suscitam são verdadeiramente interessantes e não só podem como vêm gerando boas reflexões. O problema aqui é contextual.


Até onde pude averiguar, nosso estar no mundo contemporâneo não é definido pela análise crítica. É difícil conjecturar em 140 caracteres. Regidos pelo consumo, redes sociais e uma cultura extremamente personalista — que promove a busca pela identificação com a personagem —, tenho muita dificuldade em acreditar que o adulto, com ou sem all-stars, admire a personagem sem sequer inconscientemente com ela buscar identificar-se.


Mas isso tudo é remediável, basta um pouco reflexão e nem acredito ser preciso o abandono das camisetas, estatuetas, luminárias e por aí vai. Não me estendo no consumismo, na questão do all-stars, no fenômeno Coringa e a glamourização da turbulência psicológica — mais uma vez, menos graças à obra do que à sua recepção passiva. Encerro com a retomada de algo dito no início, quando me referi às autoridades culturais da Disney (esta ainda outra questão a refletirmos) ao invés de à DC ou à Warner, os donos da propriedade intelectual Batman. Tenho convicção de que há quem tenha me abandonado, desqualificado ou chegado até aqui completamente enfurecido com tamanho ultraje de minha parte.


E a quem, como eu, custa a se afeiçoar às idolatrias cegas numa sociedade de consumo, permanece a dúvida que merece ainda algumas décadas de observação: como pode um dia ser feliz um homem que nunca foi, não é e — se tudo der certo — jamais será um Bruce Wayne ou um Batman? A partir de que momento a fantasia de poder deixa de suprir o desejo e passa a suscitar insatisfações com o mundo? E, ainda, em que medida ícones culturais como o Batman perpetuam, debaixo dos panos, valores e comportamentos nocivos, desde o fetiche consumista de carros, supermodelos e mansões ao não-enfrentamento do trauma como uma força? Porque esses símbolos existem — e são legião.


Se trocássemos os nomes pelo currículo, dizer que o ídolo é um magnata frio, com medo de relacionamentos afetivos e que à noite tenta resolver a sociedade aos murros e pontapés — sem nem sequer tentar antes uns projetos sociais de capoeira ou financiar uns teatrinhos de bairro para a molecada — seria um pouco alarmante. “É que a iconografia hoje talvez possa remeter à gostosa nostalgia que sentimos da infância”; “É que, no quadrinho 128, Bruce vai à terapia e na verdade...”; “É que o Batman na verdade é tão inteligente que concluiu que a sociedade não tem jeito e imposto é roubo e que se a gente quer algo bem feito, temos que fazer nós mesmos...” Divago, por medo dos punhos da justiça de uns e outros. Em suma, há um abismo que separa a fantasia da idolatria. A primeira é humana, íntima e capaz de proporcionar grandes descobertas sobre quem somos e o que desejamos. A idolatria, entretanto, é também humana, mas política e irracional, passível de se usar como arma e reduzir vidas e narrativas à superfície de seus símbolos — e comunidades inteiras ao pó.


Uns dias atrás, um super-homem de alguma realidade ou revista alternativa deu um beijo bi — vejam só, nem de todo gay ele foi! — e parte vocal do mundo, como de costume, foi a 140 caracteres por minuto reivindicar coerência narrativa num multiverso de possibilidades. Daqui a um século, dirão que isso eram questões de 2021 A, ou talvez B. Como gostamos de fingir serem só história hoje o sufrágio e os direitos trabalhistas. Quando houver apenas símbolos aos quais podemos aderir ou não, curtir ou não, quem há de representar a reflexão — quem há de nos iluminar a escuridão? Nossos excessivamente reais e ambiciosos CEOs bilionários se digladiando para expurgar o crime das ruas alaranjadas de Marte?


Bom, esse é um problema para o Batman do Futuro™.




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Algum Lucas.





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