Solilóquio 13 – O tal do pedantismo
Muito da literatura clássica — ou ao menos dos clássicos modernos que conhecemos — é intrinsecamente pedante. E o é pelo simples fato de muitas vezes ter sido somente acessível aos alfabetizados e que, além disso, tivessem domínio de um vernáculo quiçá mais literário strictu sensu. E tudo isso poderia ser dito assim: “muitos clássicos eram pra gente chique, porque pouca gente lia, e a literatura acabava sendo escrita pra um círculo restrito de pessoas”. Pessoas estas que, inclusive, devinham instâncias de legitimação de suas próprias produções e daquelas de seus circuitos literários, ocasionando uma retroalimentação cultural.
São fatos, contudo não consigo deixar de achá-los curiosos — e em especial se considerados na perspectiva do ódio contemporâneo ao tal do pedantismo. São questões contextuais: o mesmo provérbio latino, no contexto de uma história de ação, aventura ou série investigativa seria algo extremamente descolado; num texto de não-ficção, poema ou narrativa introspectiva, passaria por pedante ao público geral. E não é como se não fosse facílimo desvendar praticamente qualquer provérbio em qualquer idioma com uma visita rápida à internet. Grande parte do motivo reside nas expectativas projetadas sobre cada um destes formatos.
No coletivo atual, a não-ficção, diferentemente de muito da ficção, tem a função estrita de informar. Qualquer desvio ou circunlóquio estético, portanto, passa como pedantismo. Aí reside também outro critério velado: ao júri atual, a não-ficção não é arte. O que me é ainda mais curioso é notar a demanda deste mesmo júri abstrato de que a ficção se faça mais subjetiva e representativa do ser escrevente, porém sempre e cada vez mais distante do fazer jornalístico.
Pensemos sobre o audiovisual um pouco. O cinema do real, documentário, em geral, não é percebido muitas vezes como arte, mas como reportagem, ferramenta de exposição e denúncia. Uma narrativa, qualquer que seja, não é jamais percebida como algo diferente de arte, mesmo que muitas vezes não passe de comercial para o brinquedo x ou o parque y. A estetização da imagem, da narração, do enquadramento, enfim, toda a subjetividade de um documentário acaba ignorada em prol do que possa informar ou dos juízos de valor que ofereça. Mas as artes têm o nome do processo e não do resultado; são: a escrita, a pintura, a fotografia, a dança; não “o livro”; “o quadro”; “o filme”; “o espetáculo”. Todas mecanismos de expressão caracterizadas pelo ato ele mesmo.
De volta ao texto, então, se permitirmos a um ensaio ou até mesmo biografia algo mais que o informar jornalístico ou o explanar acadêmico, descobriremos não novas funções, mas novos meios — e, como já dito, os meios não são senão a arte ela mesma. Daí, a expressão latina, a gíria obscura, a ambiguidade proposital, a palavra esquecida e o estilo como um todo têm espaço para serem reconhecidos como arte, como substância ao invés de casca vazia, de pedágio intelectual, de limitação de acesso ao texto — do tal do pedantismo.
Me fazem rir, ultimamente, os discursos contraditórios que passam por complementares, como as reclamações sobre “filmes sem final”, personagens sem pé nem cabeça e os aclamados furos de roteiro em narrativas que, em sua grande maioria, tem-nos como escolhas porque preconizam o processo, o desconforto e justamente o explicitar da incoerência de sentido que estes elementos trazem à tona. Como o letramento atual se faz por fórmulas e arquétipos, porém, todo o resto fica de fora da discussão. Toda a reflexão precisa de rótulo ou tag; toda afirmação devém discurso; toda narrativa se prostra à ditadura do “se concordou com a mensagem, assine aqui”; e, enfim, nos restam só o mainstream e o cult.
Com todos em busca de originalidade e de autoexpressão, quem limita suas permissões à arte, limita, em contrapartida, tudo aquilo que poderia um dia ser. Referenciar o livro I no final do livro III ou do episódio IV devém motivo de êxtase, fan service que merece o consumo de vídeos paralelos e visitas à wiki; enquanto a palavra rara se vê fadada a morrer no mar como casca vazia de substância, sem valor artístico e com todo o demérito que há no mundo.
Entretanto, otimista que sou, a arte costuma sobreviver ao tempo, às modas, à crítica e a exegeses exiciais. Brincadeiras à parte, vida longa ao dicionário e à guerra contra a homogeneização da arte, do ser e do sentir.
Sic semper tyrannis.
Gostou do solilóquio? Tem mais por aqui. Até a próxima! Algum Lucas
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