Solilóquio 12 – Cínico cético
Alguns dias atrás, brinquei com um amigo sobre a diferença entre o cético e o cínico. Aquele, com o mote “talvez, mas provavelmente não”, e este, “e se, mas com certeza pessimista”. Nunca consigo me encaixar só em um ou outro. E não é que seja afeito a grandes reducionismos — muito pelo contrário —, sou é demasiadamente apaixonado pela ideia da indefinição, ao mesmo passo em que me movo com sonhos de tornar-me alguma coisa — e só. Mais uma vez, entre o cético e o cínico.
Nos últimos tempos, o que mais me aflige é o mundo real. Demorei a dizer-me escritor, apesar de ter oficialmente publicado só um livro, e em jornal literário. Meu currículo, com todos os seus pormenores, não vale para nada nem ninguém do mundo real — vale à imaginação de quem se impressiona, diz que o mundo é injusto, mas não tem que me contratar. “Você merece muito mais!” Mas o que preciso é pouco. É estabilidade, rotina, tempo.
A mim, me restam só as ruínas da Academia e o olhar comovido de quem diz invejar o artista no mundo real. Gostaria que me coubessem o orgulho e o idealismo utópico do artista “uma-coisa-só”, porém sei que ainda me é impossível ser qualquer outra coisa senão a metade que falta.
Demasiado qualificado pra ser qualquer coisa e privilegiado demais para conhecer piedade, sigo à margem da ideia de menino branco, como se vivesse uma vida de luxos e viajasse à praia ano sim, ano não. E é claro que não passo fome, mas também é explícito que, das minhas ferramentas, a única útil é ter nascido bem. É o meu lado cínico. Começo a retirar habilidades do currículo.
Não conheço o orgulho de ter conseguido alguma coisa — conheço só a culpa de saber no olhar do outro a certeza de que não fiz mais do que minha obrigação. Os textos seguem lidos pelos poucos que se dão ao trabalho de matar o autor ou de compreendê-lo figura humana ao invés de figura caricata, mero punhado de características, avatar. Gosto de sonhar com posturas distintas, mas duvido que possam se concretizar. É o meu lado cético.
Existe hoje uma grande incongruência no que diz respeito às artes, e em especial com a escrita. Na pintura, ninguém são se vê capaz de reproduzir um retrato hiper-realista só porque já visitou alguns museus ou viu o rosto de alguém — afinal, seria o mesmo que se sentir engenheiro ou arquiteto pelo simples fato de morar num prédio. Na escrita, entretanto, não há a mesma equivalência. Confunde-se a ideia de que todos têm direito à expressão própria com a de que todos têm também as ferramentas para tal feito. A arte dá lugar a uma ontologia, uma razão de ser onanista — e não num sentido prazeroso, mas autocontido.
A arte de escrever sai do palco — e do papel —, e entram em cena as práticas masturbatórias do “tenho direito, logo sou capaz”. É o que se passa também no cinema e nas redes sociais. No mundo da produção, não existe quem é, mas quem é mais e consegue sê-lo mais frequentemente. Dicotomias do excesso, epistemologia da masturbação. Nisto, contudo, posso negar direta relação com o viver do artista que afirma escrever, pintar, filmar, cantar, fotografar para que não deixe de existir? O cínico pontua novamente.
Quando reflito sobre os discursos motivacionais contemporâneos, sempre me pego admirado com o quanto são reminiscentes dos conselhos que tão respeitados artistas dão a seus discípulos e admiradores. “Pinte um quadro por dia”; “edite sua vida”; “escreva não sei quantas mil palavras por dia”; “acorde antes de todos e durma depois”; etc. A um artista que se vê próximo à ideia que tem do admirado, talvez fossem bons conselhos, mas provavelmente não. Eis o cético outra vez.
E não o digo por desgosto ou incompreensão. Afirmo-o pelo simples fato de que, se já antes não seriam universais nem mesmo aos artistas — que, como já constatamos, são também seres humanos e não avatares de algo maior —, de que valeriam hoje, quando são regurgitados em montagens youtubescas e palestras empresariais? A vontade de incumbir a paixão da venda de chapéus de festa infantil a alguém que só precisa de um salário, como se fizera outrora com um aspirante a pintor ou escritor, é, no mínimo, cruel.
Eu, por minha vez, ora mais cínico que cético, ora o contrário, não consigo jamais me conformar com a ideia de que foi essa a vida que escolhi. E não me desfaço da crença ciente do porquê: preciso acreditar que tenho alguma escolha — embora, em última instância, cinicamente me conforme com a minha condição.
Formalmente falando, pelo menos desta vez, sobre cinismo e ceticismo como escolas filosóficas propriamente ditas, vivo cinicamente, à margem das convenções sociais, uma vida simples e em busca do que convencionei virtudes — ao passo em que, ceticamente, questiono a cada instante tudo o que convencionei, me tornei e concluí, sem nunca deixar de ser qualquer coisa ou pelo menos devir coisa alguma. A única constante é que escrevo sobre isso e a coisa toda varia. Há dias em que só consigo pensar no bem que uma carteira assinada me faria.
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Algum Lucas.
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