Solilóquio 11 - Desassossego 427, Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
- Algum Lucas
- 20 de set. de 2021
- 3 min de leitura
Solilóquio 11 – Desassossego 427, Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
427.
Meus sonhos: como me crio amigos no sonho, ando com eles. A sua imperfeição outra.
Ser puro, não para ser nobre, ou para ser forte, mas para ser si próprio. Quem dá amor, perde amor.
Abdicar da vida para não abdicar de si próprio.
A mulher — uma boa fonte de sonhos. Nunca lhe toques.
Aprende a desligar as ideias de voluptuosidade e de prazer. Aprende a gozar em tudo, não o que ele é, mas as ideias e os sonhos que provoca. (Porque nada é o que é, e os sonhos sempre são os sonhos.) Para isso precisas não tocar em nada. Se tocares, o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a tua sensação.
Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais. A única aristocracia é nunca tocar. Não se aproximar — eis o que é fidalgo.
Bernardo Soares, semi-heterônimo de Fernando Pessoa
Ignora talvez o semi-heterônimo Bernardo Soares que quem vive de sonhos logo aprende outras e espectrais maneiras de tocar. Diferente do estoicismo bucólico de Alberto Caeiro, heterônimo-mestre, o desassossego aqui se revela no meio do caminho. Uma bifurcação entre o “Abdicar da vida para não abdicar de si próprio” e a oposição plebeia de jamais submeter-se à “única aristocracia que é nunca tocar”.
Mas quem lê ou ouve recitado um poema é quem tem a chance de tocá-lo — ou de ao menos deixar-se tocar por ele. O escrevente, entretanto, ao tocar a caneta, vê partir para longe, sem destino certo, o sonho que confeccionava há um instante, na abrasão ominosa da tinta num pedaço de papel.
E há sempre maneiras outras de pensar o escrever: pode-se dizer que a caneta singra ou sangra. No primeiro caso, traça-se rota naval, cria-se um espaço de pensar um eu no e para o mundo. Ao sangrar, porém, evoca-se o definhar penoso de quem aos poucos se vai; vêm à mente os verbos estancar, impedir, atenuar — ao passo em que extenuam-se a palavra e o sangramento.
Quem a tinta sangra, não comunica como o polvo que a tinta expele. Quem com a tinta singra, não vive de presentes dores e latências como quem dela pouco a pouco padece. Navigare est necesse, vivere non est. Navegar é preciso, viver, não. Vilém Flusser navega pela escrita. Afirma que escrever é preciso, viver, não. Mas então afirmo que, ao tocar a caneta, mata o sonho quem escreve? Sim e não. Mata-o na mesma medida em que o semeia. Neste sentido, adequada seria a metáfora da fruta e seus sutis aromas, lascivo dulçor.
Pensar o escrever como uma fruta trar-nos-ia de volta aos arcaicos pecados dos frutos proibidos, do desejo e da mesóclise. O fruto se faz por intermédios. Estaríamos a abandonar os fins pelos meios e os sentidos ocultos, seus símbolos intocáveis. Daí, teríamos verdadeiramente uma poética do tato inteira enraizada na tentação de um impossível tocar.
Contudo, o peso do simbolismo cristão nos poderia rapidamente esmagar, e o escrever docemente sórdido logo, logo cederia lugar ao escrever com culpa. O doce, ao amargo; e o dócil, ao domado. Estaríamos não num abdicar da vida para não abdicar de si próprio, mas no abdicar da vida e de si próprio.
Se, de volta aos sentidos, tomamos por regra que “ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida contém”, realmente ficam obstadas a carne, o espaço e o outro. E com espaço refiro-me aos arredores de um eu que se faz plenamente presente. O indivíduo que apenas vê e ouve se faz espectador — fantasma.
À possibilidade de escritas fantasmagóricas, portanto, seria adequado este regime do escrever. O espectro é, em essência, a ideia de um eu outrora material, embora até ali demasiado ninguém para se fazer alguém. O fantasma que vive à espreita num mundo de explicitudes, então, seria o máximo fidalgo do não ao toque — do manter-se aquém da experiência.
Eu, aqui, me vejo na margem oposta daquele que aprendeu “a gozar em tudo, não aquilo que ele é, mas as ideias e os sonhos que provoca”. Escrevo não como o espectro ou o navegante ou o filósofo ou o voluptuoso — escrevo como o construtor que erige textos-torre, sempre e cada vez mais altos, menos preocupado em tocar ou não tocar os sonhos, mas sim em alcançar um patamar tão próximo ao céu estrelado, que já não haverá ninguém capaz de imputar-lhe escolhas e máximas arbitrárias. Escrevo para não abdicar da vida — nem de mim próprio.
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Algum Lucas.
Bibliografia
PESSOA, F. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, guarda-livros na cidade de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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