Solilóquio 10 – Páginas de um diário impublicável.
Nada mais soberbo que a minha vontade de sujar essas páginas de tinta.
E se esgotei a caneta já em suas primeiras linhas é porque o esgotamento é o legado daquilo que por demais aconteceu. E se me esgoto aqui é para sentir como se por demais acontecesse eu.
E o gancho fonético que me isca como engodo aos peixes da mesma forma arranca-me de meu habitat e me asfixia por excesso do que respirar. E esse sufocamento que começa sutil é imprescindível para que eu, pouco mais à frente, sinta-me vivo graças ao tremer de medo com a iminência do me esgotar.
Minhas linhas devêm sinuosas e ameaçam arremessar-me para fora da estrada em que navego com uma nau setecentista. Sou um tripulante emérito da Inadequação, e suas regras me proíbem o almejar o falatório acolhedor do mundo.
Por navegar em terra firme, esta maravilha dos mares flerta com os abismos e horizontes por crê-los seus verdadeiros caminhos para casa. Toda nau precisa do mar. Mas todas as vezes em que me molhei descobri-me num lago — o corpo d'água que tem por início a certeza de seu fim.
Seu desejo de unir-se ao mar — o do próprio lago — só se realizará no dia em que os oceanos inundarem a terra. E por isso somos seres opostos, o lago e eu: se ele vence, sou para sempre derrotado pelo fato de ter conseguido tudo aquilo que queria.
E é essa a deprimência da minha lamúria: que faria da vida se não mais sentisse como se precisasse fazer algo dela? É a primeira lei que nos ensinam e está cravada de canto a canto nas paredes da Inadequação. Porém, é só durante as tempestades que as suas palavras nos agridem. "Ame o próximo, este é o sentido da vida." "Amar é o sentido da vida." "A família é o sentido da vida." "O trabalho é o sentido da vida." "Louvar a deus é o sentido da vida." "Rumar a nau é o sentido da vida." "É preciso encontrar o sentido da vida e, até lá, será este o sentido da vida."
Gota a gota, golpe a golpe, as tempestades tentam-nos com promessas de naufrágios, mas somos tripulantes bons demais para naufragar. Vivemos sempre para ver um novo dia e sonhar sonhos lúcidos de navios a afundar.
E conforme a página se azula de tinta, sinto na mão a dor do desejar. Gostaria de me convencer de que aprendi a escrever errado para que eu pudesse um dia conhecer o sentido material do machucar-me.
E é então que as metáforas confluem e me descubro o delírio do peixe fisgado para fora do mar. É essa fonética recontorcida do ar. Repito-a até que me falte o fôlego que preciso para me lembrar de respirar.
Hiperventilo. À cabeça me vêm imagens de uma embarcação em terra firme tripulada por peixes prestes a sufocar. Nas imagens, pelo menos, identifico-me como o peixe com chapéu de capitão.
E não me sinto tão capaz de liderar. Nunca na vida senti tanto quanto sinto agora uma vontade de agradar. Talvez seja lutando contra isso que eu me repita.
Sei qual é o meu lugar. Sei quanto me falta o ar. Sei qual luta lutar. Sei que é preciso mudar. E enfrento a resistência do ar no percurso do aceitar.
"Homem ao mar!" disseram os peixes no convés. E o baiacu arremessou-lhe uma corda enquanto o palhaço fazia piadas com os pés de pato que acabara de jogar. "Muito obrigado", respondeu o homem, "está um dia lindo para nadar!"
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Estas páginas foram escritas à mão, em um livro que me propus a construir diariamente, em caderninhos, para ver se me passava o gosto amargo da graduação, e me voltava o prazer da literatura no cotidiano. Ao relê-las e analisar o que se deu em minha vida desde então, permaneço convicto de que a palavra poética é a forma mais condensada do sentir.
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Algum Lucas.
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