Solilóquio 7 – Amyr Klink, Cem dias entre céu e mar
Descobri como é bom chegar quando se tem paciência. E para se chegar, onde quer que seja, aprendi que não é preciso dominar a força, mas a razão. É preciso, antes de mais nada, querer.
p. 11
E por muito tempo eu, Lucas, quis coisas demais. Desde a infância, com uns 7 ou 8 anos de idade, após assistir a uma palestra de Amyr Klink, tive na cabeça que queria ler e fazer algo que me soasse aos moldes de uma travessia oceânica a remo. Fui sempre muito apegado à ideia de que o mensageiro também é a mensagem — máxima talvez estoica demais da minha parte, mas é como escolho viver e é o modus vivendi que mais admiro.
Aqui, uma diferença fundamental é que, enquanto um se desloca por cem dias entre o céu e o mar, eu me sinto parado a vida toda entre a cadeira e o papel — entre a vida e a palavra. Ora demasiado vivo para me dispor à escrita como a tinha em mente, ora por demais escrevente para sair de casa e viver.
Sorte minha foi ter tido sempre um espírito inovador, mesmo sabendo que, na maioria das vezes, a ideia do outro já era a melhor a priori. E não o digo em termos competitivos nem de reinvenção da roda, é só uma questão de adaptação. Minha mesa é horrível para a maioria das pessoas, mas para mim é perfeita. Eu mesmo a fiz com isto em mente. É realmente simples, mas perfeitamente adaptada à escrita que conduzo nela, tanto a teclar quanto ao escrever à mão.
Não podia reclamar. Estava realizando um velho e encardido sonho. Só restava ter paciência. Por outro lado, tinha consciência de que vivia momentos importantes, pois poucas vezes na vida tem-se um único objetivo e a firme certeza de que, a cada dia que passa, a cada hora, a cada remada, se está mais próximo dele.
p. 76
Sendo bastante sincero aqui: realmente tentei remar — e a bem da verdade, adorei. O problema é o fator Londrina. E tudo bem. Reencontrei a bicicleta. Quase o mesmo princípio. Homem, ferramenta e repetir à exaustão. É como escrever — mas emagrece.
Ultimamente tento perceber se é demérito meu o fato de sempre ter de ouvir dos outros “mas veja bem, Lucas, em tudo há um lado bom e um lado ruim...”, como se já não o soubesse. Concluí, empírica e temporariamente, que o fenômeno é proveniente da ideia que as pessoas têm do que eu faço, e não necessariamente de mim. Para muitos, já sou escritor, bastam humildade, trabalho duro e paciência — et voilà! Eu, por outro lado, sei bem que para mim isso não basta. Não dizia há pouco que fui sempre afeito à ideia de que o mensageiro é também a mensagem?
Coube, enfim, a percepção de que, se me propuser qualquer mensagem com pompas de perfeição ou idealismos espúrios, fico confinado ao papel de mensageiro da insuficiência ou, no pior dos casos, da pretensão.
Estoicamente alterando um ponto lá e outro cá, entretanto, consigo devir tranquilamente arauto de uma mensagem distinta: construção. Tive, é verdade, de adaptar a ideia de movimento da travessia à da expansão vertical ou horizontal de uma obra, dentro de suas limitações. E fi-lo porque não tenho pretensões de lugares para ir ou objetivos a alcançar. Sou perfeitamente feliz aqui. A verdade é que, se, como dizem, alguns de nós são feitos para vagar, outros são feitos para marcar caixão, como se dizia nos esconde-escondes da infância. Eu provavelmente sou um desses. E tudo vai bem. A principal diferença, porém, é que, quando me movimento com o pedal e pela estrada, acabo sempre no mesmo lugar; mas, a sentar quietinho com o meu eu-mensagem e umas palavras, acabo sempre um passo mais próximo do meu destino.
Anotação do diário:
Vinte de agosto de 1984, dia número 72.
Posição 10º08’ latitude sul, 18º08’ longitude oeste.
Salvador a 1200 milhas.
Moral diretamente proporcional ao rendimento: baixo.
Apesar dos lindos dourados saltando! Apesar de hoje ter sido o dia mais espetacular até agora.
É engraçado como o bem-estar não depende do conforto, da tranquilidade ou de situações favoráveis, mas simples e unicamente da sensação de ir em frente.
p. 114
Já caí em todos os mitos: o de escrever triste, o de escrever feliz, o de escrever bêbado, pela manhã, à noite, de madrugada... Tudo o que se possa imaginar. Mas, com a ideia de que o mensageiro também é a mensagem, da mesma maneira que cada vírgula, cada escolha lexical define o todo, buscar para a própria mensagem a pontuação do outro não pode ser o adequado — o que, vale repetir, não destitui o outro, grande parte das vezes, do direito de estar absolutamente correto. Invocando aqui jocosamente Ortega y Gasset: cada eu com as suas circunstâncias.
Na escrita, me apeguei por tempo demais aos vazios que habitam os formatos, sem nunca parar para pensar que o mais incrível não reside no fato de um oceano ter sido atravessado a remo, mas sim no fato de que um desejo tenha sido perseguido com tamanha determinação.
A palavra da moda é resiliência, mas ela me soa, sinceramente, demasiado passiva — em especial quando servida a colheradas quânticas nessa ou naquela palestra ou curso motivacional. Com o ressurgimento recente do estoicismo, me alegra, pelo menos desta vez, compartilhar do momentum contemporâneo — sinal de que percebemos ou ao menos sentimos inquietações e turbulências similares vindas do mundo. Me desagrada, contudo, adotar a esmo as terminologias e ideias e estratégias sem adaptá-las, mesmo que minimamente.
Pode parecer óbvio agora que o apocalipse ou a estadia de Jonas na barriga da baleia devam ser entendidos como parábolas que são, mas — e agora parto da bíblia para não tocar em assassinatos e outras violências — como vêm percebendo os indivíduos esse mundo que se faz em superfícies? Que mensagem e que mensageiro se revelam em uma parabólica foto perfeitamente editada, filtrada e selecionada? E mais: em que direção isso ruma o seu barco ou quanto é capaz de incrementar sua construção? Em todas as contas que fiz, a resposta sempre deu 0.
Possível inaptidão matemática minha, talvez, mas me construo mensagem e mensageiro com estas palavras de Amyr Klink sempre em mente:
Uma hora perdida é uma hora perdida, e quando não se tem rumo definido é muito fácil perder horas, dias ou anos, sem dar conta disso.
p. 119
E eu tenho o meu rumo muito claro: construir uma obra cada vez mais fortificada para que eu possa, conquanto ainda o queira, permanecer aqui.
E-mails em: anonimatosmanifestos@gmail.com
O site, AlgumLucas.com
O jeito de apoiar diretamente, @anonimatosmanifestos ou @algumlucas para assinar a partir de R$2,00, no picpay.
Até breve.
Algum Lucas
KLINK, Amyr. Cem dias entre céu e mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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