Pouco afeito tanto a resenhas quanto a crônicas, me encontro de certo modo encurralado após a leitura de “Um feminismo decolonial”, de Françoise Vergès, livro do mês de abril no circuito-Ubu. Primeiro, porque calar-se é fomentar a invisibilidade do tema, segundo, porque falar e ser ouvido poderia ser a usurpação (palavra feia) de um lugar de fala que não me convém. De todo modo, falo (palavra invasiva, que sugere) — na esperança de contribuir com o debate.
Na perspectiva decolonial, os feminismos vêm à tona como sintomas — de uma violência estrutural, de um histórico de abusos, de uma máquina capitalista. E há pluralidades: de feminismos, de sintomas e de perspectivas. A grande chave de Françoise Vergès é ater-se especialmente à questão identitária e destrinchá-la em diversos âmbitos do referencial e do discurso feminista contemporâneo. Explico: a crítica se constrói num terceiro espaço, simultaneamente aquém e além dos polos midiático e acadêmico. A reconstrução do percurso das conquistas da mulher ao longo das décadas evidencia em que medida diversas concessões dos patriarcados — o liberal e o conservador — se deram em nome do bom e velho progresso. O mundo capitalista, heteropatriarcal e neoliberal — o nosso mundo — depende intrinsecamente do trabalho de milhões de mulheres invisíveis, que esgotam seus corpos para que as patroas possam se dedicar à carreira e à ioga, e os patrões, à bolsa de valores e à corrida dos ratos.
O texto, então, prepara os alicerces do pensamento utópico que há de servir de convite a sonhos emancipatórios (VÈRGES, 2020. p. 136) com um olhar frio e muito bem embasado por sobre a distopia do mundo coetâneo. Olhar, este, capaz de guiar por sobre as silhuetas invisibilizadas das mulheres racializadas que limpam o Primeiro Mundo instagramável — individualista. Questões que agora explicitam-se com as discussões sobre o valor das vidas e dos serviços ditos necessários na pandemia.
Convergem aqui, enfim, minhas palavras e minha hipocrisia. Pensava em construir o fluxo do texto com o foco na invisibilidade por meio de um paralelo com “A invenção de Morel”, de Adolfo Bioy-Casares (que, tal qual Camus, era o que hoje se chamaria boy lixo, ou chernogaroto, tóxico). E sei bem que o autor e a obra bla bla bla, e o texto ble ble ble — o fato é que não queria mais falar do assunto em paralelos, à distância segura da terceira pessoa ausente, quero que o livro seja lido por outros homens, quero que a utopia se possa sonhar em conjunto. Acontece que não posso afirmar o ridículo: “tenho daltonismo ideológico, não vejo gênero, não vejo cores...” Da mesma maneira que me perguntava se podia dizer algo a respeito enquanto lia, me indagava se Françoise Vergès era negra e, se não, como seriam suas ideias percebidas pelas outras pessoas. Não resisti e pesquisei. Foi a sua brancura, talvez, que me autorizou, me outorgou a fala. Mas faço parte do problema que tocam tanto Zizek quanto Vergès? Sou também agente do totalitarismo silenciador que abafa o debate e permite só os gritos de escárnio e os pedidos de socorro?
Muito provável. “É praticamente impossível fazer uma mulher branca reconhecer que é branca” (VÈRGES, 2020, p. 53). Em contrapartida, é praticamente impossível fazer um homem branco esquecer que ele é um homem branco. Não acredito “fazer parte da solução”, porque creio piamente que outro revés do mundo machista é que o homem só importa — e só se importam com ele — quando morre herói ou comete um crime. E o meu crime seja talvez o pessimismo de estar com Vergès quando diz (e me desculpo de antemão pelo pecado acadêmico que cometo com a extensão do trecho) que
Muitas dessas séries, filmes ou artigos têm qualidade (eu assisto a eles com prazer) e não discordo de que possam representar importantes contramodelos para meninas, moças e mulheres, entretanto a difusão massiva pelas novas mídias de histórias individuais perpetua a ilusão de que qualquer uma pode realizar seu sonho, basta não ter medo de contestar certas normas. São narrativas que frequentemente se baseiam em uma psicologização das discriminações. A luta raramente é coletiva, a crueldade e a brutalidade das estruturas raramente são mostradas de modo explícito. As heroínas lidam com indivíduos que ultrapassam seu poder, mas aquilo que perfaz a estrutura, aquilo que repousa sobre os mecanismos de dominação e exploração há muito tempo elaborados, que tem à sua disposição a polícia, o Exército, o tribunal e o Estado, pouco é evocado. O que é preciso de coragem, de esforço cotidiano e de organização coletiva para dobrar as estruturas não é evocado. (VERGÈS, 2020, p. 76-77)
E eu talvez seja aqui demasiado contemporâneo ao duvidar que as estruturas possam ser coletivamente “dobradas” — estou muito mais inclinado a acreditar que possam somente dobrar a si mesmas. Lugar-comum do homem branco num mundo de jargões como o atual “vocês que lutem”. Resigno-me, enfim, ao último pecado do texto: a lembrança da invisibilidade que me assombrava por toda a leitura.
Ainda antes do advento do Homo Pandemicus, no primeiro mês de funcionamento de uma franquia de fast-food multinacional aqui em Londrina, ao adentrar o banheiro para lavar o rosto e as mãos, me deparo com uma senhora que chora. Compadecido e benevolente, ofereço-lhe um pouco d’água, pergunto se está bem, e ela me responde, num choro abafado, suando e vermelha (o ar-condicionado não funcionava desde a inauguração, e a loja seguia a atender mesmo assim): “O dia inteiro nesse calor... Eles não se importam com a gente.” Minha tréplica foi aos moldes horrorizados de “Oh! Ah! Onde já se viu?! Mas como pode?!” Ela, a seguir, me agradeceu, “dei”-lhe um pouco d’água e me puni com uma boa refeição. Nunca mais a vi. Ou provavelmente só não me lembre de seu rosto. Na semana seguinte, merecedor de uma extravagância, estava lá de volta, feliz com um cupom de promoção. No andar de cima, sentei-me em uma mesinha imaculada, bem em frente ao ar-condicionado e, reaclimatado, pensei: ufa, agora deve estar tudo bem.
VERGÈS, F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu, 2020.
Algum Lucas
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