top of page
Foto do escritorAlgum Lucas

O contador de histórias, um conto de Saki traduzido

Atualizado: 17 de mai. de 2020

O contador de histórias - Saki - Tradução de Algum Lucas


Era uma tarde quente, o vagão ferroviário estava correspondentemente abafado, e a próxima parada era em Templecombe, em aproximadamente uma hora. Os ocupantes do vagão eram uma garotinha, um garotinho e uma garota ainda menor. Uma tia das crianças ocupava o assento do canto, e o assento do outro canto, no lado oposto, era ocupado por um homem que não pertencia ao grupo, mas as garotinhas e o garotinho enfaticamente tomaram conta do compartimento. Tanto a tia quanto as crianças conversavam de maneira limitada e persistente, a fazer lembrar uma mosca que se recusa a ser desencorajada. A maior parte das observações da tia pareciam começar com "Não", e quase todas as observações das crianças começavam com "Por que". O homem nada dizia. "Não, Cirilo, não", exclamava a tia, quando o garotinho começou a bater nas almofadas do assento, produzindo uma nuvem de poeira a cada golpe.


"Venha e olhe pela janela", ela acrescentou.


A criança movia-se relutantemente à janela.



"Por que aquelas ovelhas estão sendo levadas para fora do campo?", ele perguntou.


"Acredito que estejam sendo dirigidas a um outro campo onde haja mais grama", disse a tia fracamente.


"Mas tem muita grama naquele campo", protestou o garoto; "não tem nada além de grama ali. Tia, tem um monte de grama naquele campo."


"Talvez a grama no outro campo seja melhor", sugeriu a tia tolamente.


"Por que ela é melhor?", veio a rápida, inevitável questão.


"Oh, olhe aquelas vacas!", exclamou a tia.


Praticamente todos os campos ao longo da linha tinham bois e vacas, mas ela falava como se estivesse chamando atenção a uma raridade.


"Por que a grama no outro campo é melhor?", persistiu Cirilo.


O franzir de sobrancelhas na face do homem intensificava-se em uma carranca. Ele era um homem duro e antipático, decidiu a tia em sua mente. Ela era totalmente incapaz de alcançar qualquer decisão satisfatória a respeito da grama no outro campo.


A garotinha ainda menor criou uma distração ao começar a recitar "Na estrada para Mandalay". Ela sabia apenas o primeiro verso, mas pôs seu conhecimento limitado ao máximo uso possível. Repetia o verso de novo e de novo, desatinada mas resolutamente, e com uma voz bem audível; ao homem era como se alguém tivesse apostado com ela se não conseguiria repetir o verso em voz alta duas mil vezes sem parar. Quem quer que fosse o apostador muito provavelmente iria perder.


"Venham aqui e ouçam a uma história", disse a tia quando o homem olhou duas vezes a ela e uma ao cabo de comunicação.


As crianças moveram-se exaustivamente em direção ao lado do vagão da tia. Evidentemente sua reputação como contadora de histórias não era muito alta na estima delas.


Numa voz baixa e confidencial, interrompida em intervalos frequentes por questionamentos altos e petulantes de seus ouvintes, ela começa uma não aventurosa e deploravelmente desinteressante história sobre uma garotinha que era boa e fazia amizade com todo mundo por causa de sua bondade, e que fora finalmente salva, de um touro ensandecido, por vários defensores que admiravam seu caráter.


"Eles não a salvariam se ela não tivesse sido boa?", requereu a maior das garotinhas. Era exatamente a mesma questão que o homem queria perguntar.


"Bem, sim", admitiu a tia, sem jeito, "mas eu não acho que teriam corrido tão rápido para ajudá-la se não tivessem gostado tanto dela."


"É a história mais idiota que eu já ouvi," disse a maior das garotinhas, com imensa convicção.


"Eu não ouvi depois da primeira parte, era muito idiota", disse Cirilo.


A garotinha menor não fez nenhum comentário sobre a história, mas tinha há muito recomeçado uma repetição murmurada de seu verso favorito.


"Você não parece ser um sucesso como contadora de histórias", disse o homem, de repente, do seu canto.


A tia eriçou-se instantaneamente em defesa a esse ataque inesperado.


"É muito difícil contar histórias que as crianças possam tanto entender quanto apreciar", disse a tia, com dureza.


"Eu discordo de você", disse o homem.


"Talvez você gostasse de contar uma história para elas", foi a retaliação da tia.


"Nos conta uma história", demandou a maior das garotinhas.


"Era uma vez", começou o homem, "uma garotinha chamada Berta, que era extraordinariamente boa."


O interesse momentaneamente estimulado das crianças começou a vacilar; todas as histórias pareciam terrivelmente parecidas, não importava quem as contasse.


"Ela fazia tudo o que mandavam, era sempre honesta, mantinha suas roupas limpas, comia pudins de leite como se fossem tortas de geleia, aprendia suas lições perfeitamente e era educada."


"Ela era bonita?", perguntou a maior das garotinhas.


"Não tão bonita quanto uma de vocês", disse o homem, "mas ela era horrivelmente boa."


Houve uma onda de reação em favor da história; a palavra horrível em conexão com bondade era uma novidade que se autopromovia. Parecia introduzir um halo de verdade que não era presente nos contos da tia sobre a vida infantil.


"Ela era tão boa", continuou o homem, "que ganhou diversas medalhas por bondade, as quais ela sempre usava, presas ao seu vestido. Havia uma medalha por obediência, outra medalha por pontualidade e uma terceira por bom comportamento. Eram largas medalhas e batiam umas nas outras conforme ela andava. Nenhuma outra criança na cidade em que ela vivia tinha três medalhas, então todos sabiam que ela devia ser uma criança extra boa."


"Horrivelmente boa", citou Cirilo.


"Todos falavam sobre sua bondade, e o Príncipe do seu país acabou ouvindo sobre isso e disse que, como ela era tão, tão boa, ela teria permissão para, uma vez por semana, andar em seu parque, que ficava logo além da cidade. Era um lindo parque, e nenhuma criança jamais havia tido permissão para adentrá-lo, então era uma grande honra para Berta ter permissão para ir lá."


"Tinha ovelhas no parque?", requereu Cirilo.


"Não", disse o homem, "não havia ovelhas."


"Por que não tinha nenhuma ovelha?", veio a inevitável questão surgida daquela resposta.


A tia permitiu-se um sorriso, que poderia quase ser descrito como de escárnio.


"Não havia ovelhas no parque", disse o homem, " porque a mãe do Príncipe um dia teve um sonho em que seu filho morreria ou por uma ovelha ou por um relógio caindo nele. Por este motivo o Príncipe nunca teve ovelhas em seu parque ou um relógio em seu palácio."


A tia suprimiu um suspiro de admiração.


"O Príncipe foi morto por uma ovelha ou por um relógio?", perguntou Cirilo.


"Ele ainda está vivo, então nós não podemos saber se o sonho se fará realidade", disse o homem, despreocupadamente; "de todo modo, não havia ovelhas no parque, mas havia um monte de porcos correndo por todo o lado."


"De que cor eles eram?"


"Pretos com caras brancas, brancos com pintas pretas, todos pretos, cinzas com manchas brancas e alguns eram todos brancos."


O contador de histórias pausou para deixar que toda a ideia dos tesouros do parque se assentasse na imaginação das crianças; e então retomou:


"Berta estava muito triste em descobrir que não havia flores no parque. Ela havia prometido a suas tias, com lágrimas em seus olhos, que ela não pegaria nenhuma das flores do querido Príncipe, e ela queria manter sua promessa, portanto é claro que descobrir que não havia flores para pegar fez com que se sentisse boba."


"Por que não tinha flores?"


"Porque os porcos tinham comido todas elas", disse o homem, prontamente. "Os jardineiros disseram ao Príncipe que não se pode ter porcos e flores, então ele decidira ter porcos e não flores."


Houve um murmúrio de aprovação a respeito da excelência da decisão do Príncipe; muitas pessoas teriam decidido do outro jeito.


"Havia um monte de outras coisas encantadoras no parque. Havia lagoas com peixes dourados e azuis e verdes nelas, e árvores com lindos papagaios que diziam espertezas a qualquer momento, e beija-flores que cantarolavam todas as canções populares do dia. Berta andava para lá e para cá e se divertia imensamente, e pensava consigo: 'Se eu não tivesse sido tão extraordinariamente boa, eu não teria tido permissão para vir a este lindo parque e aproveitar tudo o que há para se ver nele', e suas três medalhas tilintavam enquanto ela andava, e ajudavam-na a lembrar-se de como ela era tão, tão boa. Naquele momento, um lobo enorme veio rondar o parque para ver se conseguia capturar um porquinho gordo para sua ceia."


"De que cor ele era?", perguntaram as crianças, num imediato estímulo de interesse.


"Todo cor de lama, com uma língua preta e pálidos olhos cinza que brilhavam com uma indescritível ferocidade. A primeira coisa que vira no parque fora Berta; seu avental era tão impecavelmente branco e limpo que podia ser visto de muito longe. Berta viu o lobo e viu que ele estava correndo em sua direção, e ela começou a desejar que nunca tivesse tido permissão para vir ao parque. Ela corria o máximo que conseguia, e o lobo vinha atrás dela a passos largos. Ela conseguiu alcançar uns arbustos de mirtilos e escondeu-se no maior deles. O lobo veio farejando pelos ramos, sua língua preta pendendo para fora de sua boca, e seus pálidos olhos acinzentados brilhando com raiva. Berta estava terrivelmente assustada e pensou consigo: 'Se eu não tivesse sido tão extraordinariamente boa, eu estaria a salvo na cidade agora.' Contudo, o aroma de mirtilo era tão forte que o lobo não conseguia farejar onde Berta estava se escondendo, e os arbustos eram tão grossos que ele talvez pudesse caçá-la neles por um bom tempo sem conseguir encontrá-la, então ele pensou que podia mesmo, ao invés disso, era ir embora e pegar um porquinho. Berta estava tremendo muito por ter o lobo farejando e rondando tão perto dela, e, enquanto ela tremia de medo, a medalha por obediência tilintava junto às medalhas por boa conduta e por pontualidade. O lobo estava quase indo embora quando ouviu o tilintar das medalhas e parou para ouvir; elas soaram de novo num arbusto bem perto dele. Ele correu para dentro do arbusto, seus pálidos olhos cinzentos brilhando com ferocidade e triunfo, e arrastou Berta para fora e devorou-a até o último pedaço. Tudo o que sobrou dela foram os seus sapatos, pedaços da roupa, e as três medalhas por bondade."


"Algum dos porquinhos foi assassinado?"


"Não, todos eles escaparam."


"A história começou mal", disse a menor das garotinhas, "mas teve um belo final."


"É a história mais bonita que eu já ouvi", disse a maior das garotinhas, com imensa certeza.


"É a única história bonita que eu já ouvi", disse Cirilo.


Uma opinião dissidente veio da tia.


"Uma história muito inadequada para se contar a crianças! Você minou o efeito de anos de ensinamento cuidadoso."


"De qualquer maneira", disse o homem, coletando seus pertences em preparo para deixar o vagão, "eu as mantive quietas por dez minutos, o que foi mais do que o que você conseguiu fazer."


"Mulher infeliz!", ele observou a si mesmo enquanto descia da plataforma da estação de Temblecombe; "mais ou menos pelos próximos seis meses aquelas crianças vão atacá-la em público com demandas de uma história imprópria!"

Posts recentes

Ver tudo

Solilóquio 9 - "Dilema", de Alda Merini

Solilóquio 9 – Dilema, de Alda Merini “Este triste senhor da dúvida encantou as plateias com um discurso que não tem nenhuma lógica, uma...

Comments


bottom of page