Luiz Henrique com Z
Dizem que, na vida de um homem especificamente, há sempre o momento em que se descobre que o pai não é senão também um homem, ele mesmo. Para mim, essa hora chegou alguns anos atrás.
E não é que se perca o respeito pelo homem-pai e nem mesmo é o caso de se alterar o amor — a sua identidade é que se revela a uma nova perspectiva. E digo “sua” intencionalmente ambíguo, já que tanto o homem-pai e o você-homem olham um ao outro. “Homem-pai”, porque o herói de outrora devém antes homem que símbolo, figura paterna. E “você-homem”, pois não há como ser antes outra coisa além de si, ainda mais neste momento seminal de amadurecimento.
Comigo não houve grande crise nem nada parecido. Eu tive a sorte de sempre saber exatamente tudo aquilo que eu não queria fazer. Para mim, a figura do homem que me julga é tudo o que obsta a lembrança de que é ele o meu pai, pessoa que me ama desde antes de nascer e até hoje, apesar de eu ter me tornado quem sou — e de maneira tão pouco rentável.
O meu pai foi sempre um homem bom, amável, hospitaleiro. Nunca violento, por vezes até passivo em demasia. Penúltimo filho, com apenas uma irmã caçula, fora sempre curioso e único, mas coadjuvante. Deu sempre tudo pelos outros, tentando tirar às margens suas pequenas vitórias. Creio que nem em sua própria vida o protagonismo tenha ficado com ele. Este livro é minha chance de dar-lhe uma espécie de protagonismo, que seja ao menos no processo de minha formação como indivíduo.
Em sua família, todos, exceto a menina, eram obrigados a estudar medicina. E o fizeram — a muito custo, para o meu pai, mas fizeram. “Vocês podem fazer o que quiserem da vida, mas antes têm de estudar medicina. Um médico tem sempre trabalho.” Já ouvi muitas vezes a história. Acontece que, após ter sido mandado a São Paulo pré-adolescente para morar num porão e ingressar na medicina aos dezesseis anos, a vida já começava a se configurar nos moldes dos outros e não os seus.
Vou pular aqui toda a parte sobre morar no Nordeste após se formar, as crises profissionais, a vez em que enviou currículo de médico para tentar vaga de chapeiro no McDonalds... À guisa de introdução, cabe saber o que sacrificou para que hoje pudesse ter a vida que tem, sem grandes luxos além de ir frequentemente à praia, mas sem um monumental patrimônio como se costuma pressupor dos médicos.
Teve sempre pavor de plantões, aversão ao stress e medo do conflito. Esta, característica que se configura a mais decisiva em muitas de suas relações. Tanto pelo lado ruim, como já mencionado, como pelo lado maravilhoso: é uma das melhores pessoas para se ter por perto na hora de se divertir. É engraçado, brincalhão, generoso e extremamente hábil em mil e uma atividades — da construção de hortas à culinária e montagem de pratos finos. O que não o torna um acadêmico ou um estudioso profundo, vale dizer: é o rei da leitura dinâmica, do experimento despretensioso.
Do ambiente competitivo de que veio, acredito que tenha se tornado tão bom em contornar conflitos justamente porque as suas modalidades favoritas nunca tiveram pódio. Mas acontece que — e sinto muito informá-lo ao leitor que não o saiba — na vida há sempre o incontornável. É, por exemplo, incontornável que ele seja ele, e eu, eu. Que o futuro seja iminente. Que o passado tenha acontecido.
Minto se digo que a única razão de ser deste livro é a de dar ao meu pai algum protagonismo só no bom sentido. A verdade é que preciso elaborar também a culpa que sinto por querer escrever em detrimento de todas as outras coisas que ele é capaz de entender e admirar. Desde que o meu pai tornou-se o homem que é o meu pai, percebi que a insuficiência que tanto me doía sentir cabia, em grande parte, à minha dificuldade de aceitar que, para ele, o que eu sou é muitas vezes inacessível e, mais do que isso — incontornável.
Acredite, já tentei ser muitas coisas antes de chegar à minha máxima recente: “primeiro seja”. Comigo, dizer “eu sou qualquer outra coisa” sempre traduziu-se em “eu não passo da tentativa de ser algo que não sou”. Os fatos são o que são: eu escrevo, e isso não se vê, nem dá dinheiro por um bom tempo. Professor de latim, ele admiraria; diplomata, se orgulharia; tradutor, sobreviveria. Mas eu escrevo em horas invisíveis e palavras intangíveis a um homem que, por bem ou por mal, tem dificuldade em me enxergar atrás do amor que sente por mim. Jamais vou me doer por falta de amor ou carinho, nem sequer por desinteresse. Parte do problema é que, mesmo tendo sido o meu pai um dos maiores promotores da ideia de que a leitura é uma das atividades mais tudo-que-há-de-bom-no-mundo, ele mesmo, há muitos anos, não lê senão um ou outro artigo de reumatologia.
Vivo elaborando ideias mirabolantes de carreiras impossíveis só para não precisar ter com ele a mesma conversa de “olha, agora eu me enfiei nesse buraco e é isso o que eu vou ser da minha vida, escritor, sei que o dinheiro vai ser muito apertado por muito tempo, mas agradeceria muito se você pudesse continuar me ajudando, mesmo que te doa a vergonha de responder aos amigos, irmãos e primos, enfim, que o Lucas está ‘só escrevendo’”. Detalhe que não mencionei: a medicina e a tradição seguem firme na família. E não é que eu me compare ou tenha pretensões de competir com eles, é que me dói saber que ao meu pai isso talvez doa. De que me adiantam os livros lidos, os idiomas, o seja-lá-o-que-for, se vou ter de sempre responder em termos de “não muito, por enquanto” quando me perguntam como vão as coisas, social e financeiramente?
Há alguns meses, tive a coragem de perguntar ao meu pai se ele sentia vergonha de mim. Respondeu com tons de obviedade: “É claro que não!” Fiquei feliz, não posso negar. Mas isso não mudou o fato de que ele ficou ainda mais feliz quando me convenci a prestar um concurso para a polícia federal. “Eu tô vendo que você não tá parado, que tá correndo atrás, isso é o que importa”.
A bem da verdade, do ponto de vista mercadológico, não me ajuda eu escrever ensaios, confissões e poesia em tons de filósofo, ainda mais no espaço literário do Brasil. Era mais fácil para todo mundo se eu escrevesse histórias de vampiros e distopias políticas. O fato é que, apesar dos pesares, o que faço vem dando certo. Devagar nos termos mundanos, porém excepcionalmente rápido em termos literários. E tudo isso construído nos poucos momentos em que não me senti envergonhado ou em dívida com ele e minha mãe por dedicar todo o amor e todos os recursos que investiram em mim nessa atividade egoísta e ingrata, como tantas vezes é a escrita.
Oscilo, desde o início, entre nunca fazer nada com este texto e enviá-lo assim que terminado ao meu pai. Gosto da ideia de dar-lhe um livro de presente um dia, um livro em que é o protagonista. Contudo preferia construí-lo em conjunto, ao longo dos anos, com os vai e vens da vida entre nós. Dos privilégios que se pode ter numa vida, um dos maiores é tê-lo como pai, mesmo que o homem-pai já me tenha mostrado as garras. De todas as características que posso pegar dele, uma eu estou decidido a nunca adotar: não fui feito para contornar os problemas. Para mim, há muito o que é impossível ignorar só para seguir em frente. Eu me dedico a cada problema como a cada página, e só sigo adiante com a casa em ordem.
Portanto, por mais que me doa hoje sentir o meu pai envergonhado ou receber o olhar pernicioso deste ou daquele familiar que pensa pouco de mim sem férias na Itália e sem BMW, eu escrevo. E quando os seus carrões forem apenas lata, pela minha palavra, o amor que o meu pai me deu há de habitar a eternidade.
Algum Lucas
24/03/2021
Bom dia ou boa tarde ou até boa noite. Eu conheci seu canal no YouTube há 3 horas e estou amando. Cada palavra que foi colocada e combinada em forma de sentimento foi sinestesico demais pra mim,cara foi incrível, eu acho que durante alguns minutos eu fui você,vou precisar de terapia para voltar a ser eu kkk ei, o amor em toda história da humanidade, sempre valeu mais do que dinheiro e O Amor que mudou a história foi a de um Pai.
Olá, descobri seu canal ontem antes de dormir já maratonei e me apaixonei perdidamente com este lindo conteúdo e bom tenho situações parecidas com o meu pai e também com minha vida nesse texto, tenho meus objetivos e aquilo que me alegra que assim como você jamais deve abandonar pois é isto que de fato nos tornará nós mesmo. Estamos apenas começando e antes feito do que perfeito. Afinal de contas eu também me chamo Luiz Henrique, é um prazer estar aqui. Com Z