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Feminiilidade - Conto escrito em 2017

Feminiilidade ou O que algumas pessoas fantásticas chamariam de reação histérica


Caminha à academia numa linda tarde de primavera. Os carros vrum vrum; as bikes trim trim; os passarinhos piu piu. Entre o posto de gasolina à sua esquerda e a loja de artigos esportivos que adora, há uma velha casinha, pacífica em meio à buzinação dos carros e o incessante caos da cidade. No jardim, dois velhinhos estilo colete-e-boina jogam xadrez e observam a vida, do lado de lá da cerquinha branca. Crianças pequeninas orbitam-nos, correndo e fazendo-lhes perguntas sobre a vida. Têm tanta sabedoria e amor para dar, pensa. Imagina suas vidas felizes, suas velhinhas companheiras e felizes, uma legião de netinhos arteiros, amáveis e, acima de tudo, felizes. Sonha encontrar alguém com quem possa também sonhar e viver do lado de cá de uma cerquinha branca.

Alcança, finalmente, a loja. Sorri ao ver um short, igualzinho ao que comprara na semana passada e veste neste exato momento. É um belo dia de sol e por isso permite-se cobiçar o relógio verde-bem-clarinho que não pudera comprar ainda. Em sua mente, o relógio já em seu pulso tic tac — ao seu redor, o ensurdecedor e pungente murmúrio do mundo fiu fiu.

Olha à sua volta: os frentistas, bem longe, incrivelmente nem sequer olham em sua direção; não há carros com janelas abertas, nem mais pedestres por toda a rua — resta uma única possibilidade. Seu coração sangra com antecedência. Por mais triste que lhe seja admitir, está acostumada, infelizmente, porém, desta vez, precisa ter certeza. Gira o corpo vagarosamente cento e oitenta graus. Os velhinhos abrem um sorriso pútrido e, de súbito, puf! Desaparecem. Ecoa, no vazio que deixaram, fiu fiu.

A arquitetura da cidade transfigura-se, de belas construções reluzentes nas quais habitam famílias felizes, em obeliscos e templos opressivos, cinzas e fálicos; fábricas de predadores que lhe tomarão, da menina que ainda sonha com sua festa de debutante, suas belas tardes de primavera e o prazer de sentir-se bem consigo, despreocupada, leve. Figura as conversas que têm seus amigos e as que ainda terá com outros amigos o irmão mais novo que — puf — se esvaiu. Reverbera como uma canção, no vazio. Fiu fiu.

Torna o olhar às crianças que, há pouco, orbitavam os seres mais sábios de sua família, mas que agora, percebe, são inevitavelmente arrastadas na direção de um buraco negro, o máximo vazio. Perscruta, lá dentro, o futuro dessas pobres e até então inocentes criaturinhas e não vê saída — não há esperança. Serão absorvidas e puf! Pela espinha, um calafrio traz à memória a mais detestável e repugnante eufonia que já existiu: fiu fiu.

Em casa, silêncio. Não ousa falar, porque sabe. Com toda a certeza sabe. "Ela pediu." A mãe detesta vagabundas de novela. "Mulher tem de ter classe" — puf! — sumiu. Vão logo à missa e à pizzaria jantar. Ao menos papai... Sorriu. "Não quer pôr um saltinho, filha?" puf... vazio. . . f. . .


Texto retirado de Index Homunculi,

um livro de contos que um dia crio coragem de publicar.

Algum Lucas

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