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EX NUNC, um romancete - 3ª Sessão

Atualizado: 21 de abr. de 2020

3ª Sessão

Boa tarde... acho que nunca vou me acostumar com esse negócio de só chegar e sair falando... Mas tudo bem, "vamo que vamo": como você pode perceber, meu perfume hoje é Marlboro light; mas tenho bons motivos, porque — sim: estou extrema e incomensuravelmente puto. Na merda daquele meu prédio, a excelentíssima senhora síndica, Dona Josi, que por acaso é nossa vizinha de frente, me encontrou no corredor, justo quando eu apertei o botão do social. "Ah, mas o que que tem?", você diria. Ora, tem que algum energúmeno no quatro tava segurando a merda do elevador de serviço, aí, quando eu cansei de esperar e chamei o social (justo nesse momento fatídico!), a desgraçada da Dona Josi me aparece com aquele marido pé-rapado dela, com ares de quem não viu problema nisso. Na hora eu fiquei sossegado, tentei mostrar que alguém cansou de esperar e chamou no 3 também e tudo o mais. A Júlia riu comigo, passou.


Mas hoje, chuta qual aviso puseram no elevador? Pois é: "Por favor só chamem somente um dos elevadores, por quê temos observado que é com muita frequência" blá blá blá. Primeiro: como diabos ela consegue errar todos (todos!) os avisos?! A infeliz sempre arranja um jeito de escrever da maneira a mais enfadonha possível. Como se elege síndica, meu deus? Não sei como funciona, mas não é possível que nenhuma outra dona de casa desocupada não se interesse pelo cargo. Cheguei, sinceramente, a considerar concorrer ao cargo de síndico, só porque na minha mente perturbada eu acho que tenho chance. E dava uma desculpa boa de continuar morando lá em casa "sem contribuir", porque olha só: qualquer isençãozinha de condomínio e tudo o mais já contaria como subtração no débito que tenho para com meus ilustríssimos, que tão solene e abnegativamente me permitem residir em sua villa urbana suspensa acima de outras seis.


Mas enfim: aí ela me bota essa bosta desse aviso e tenho que ficar revivendo a situação toda vez que uso a merda do elevador. Ainda se eu fosse um dos idiotas do onze, que não sabem que dá pra chamar um elevador por vez, tudo bem — mas eu moro lá desde pequeno, Dona Josi, já li essa caralha de anúncio nessa carroça desse elevador pra mais de mil vezes, Dona Josi! Chega a ser ofensivo isso, pra mim. Fiquei completamente descompensado e desandei a fumar... mas fala você um pouco, saí igual a um louco falando hoje, perdão.


Sim... talvez...


Como assim "uma maneira de redirecionar"? Como se eu só quisesse uma desculpa?...

Sim, sim, eu entendi o que você tá querendo dizer, mas parece muito fácil. E isso é também o tipo de coisa que sempre me enfurece, sabe? Ela duvidando da minha índole, como se eu chamasse os dois elevadores sempre, independentemente da situação. E o que mais agride é ela ter fingido que tava tudo bem. Pô, nem pra me interpelar ali na hora? Te conheço de vista há uma vida, Dona Josi, caralho, tem que valer pra alguma coisa essa merda.


Mas tudo bem, no fim, isso não é nada. O negócio é que fiquei tão irritado que catei a porcaria de um romance contemporâneo desses que o Pai compra e não lê e, por sorte, me identifiquei. Não lembro o nome, mas é sobre um cara que quer escrever um livro, mas ele acaba revisitando a casa e os lugares da infância, no meio de um bloqueio, e pelo que entendi o livro nunca vai sair, ou vai sair outro livro e tal. E eu me identifiquei, sabe? Ainda mais que o cara fuma e vive olhando pros outros enquanto toma café e aí começa a divagar e tudo o mais, achei bem legal, filosófico. Eu? Não, não leio muito, nunca li, na verdade. Por isso que tô dizendo que realmente fiquei irritado. O Otávio já leu, ele sempre gostou, falou pra eu não me apegar muito ao livro, porque é tudo um clichê da literatura contemporânea e blá blá blá. Ah, ele é o meu melhor amigo né, e quando você não lê muito e pega num livro tem que rolar aquela fotinha, pra dar um charme ali nas redes sociais, né não? Aí ele viu e já veio falar comigo, todo animado e tal, mas com ressalvas e tudo o mais.


Ah... o Otávio é o Otávio, ele faz o q ue ele faz. Veio com um papo de que nem sempre é ideal ler tentando se identificar e tudo o mais, "porque assim você não treina a empatia" e essas histórias de comunista dele. É um cara bem-intencionado, mas ele se deixa levar demais pelas viagens dele. Enfim, tô gostando do livro, tá todo mundo falando bem dele e todo mundo gostou da foto também, então tá tudo mais que ótimo, não vou deixar o cara vir agora e tirar isso de mim. Pô, não quero também que você veja dessa maneira: veja bem, eu não disse que ele é babaca ou coisa do tipo, só tô dizendo que ele tende a complicar demais as coisas. Eu não leio, não me interessam "as tendências do contemporâneo", eu só quero curtir um livrinho de cento e poucas páginas e é isso aí. Mas, pô, aí, ao invés do cara chegar no incentivo, ele vem com papinho existencialista e tudo o mais? É foda. Acima de tudo, pra mim, ultimamente, o que tá foda mesmo é manter essa amizade... Pra ele? Como assim?


Caraca... bem observado, talvez seja isso mesmo. Às vezes era ele tentando segurar a amizade daquela ponta, porque ele nunca vem puxar assunto assim do nada mesmo, e justo quando o assunto é livro que ele conhece e tudo o mais, ele aparece. Pô, faz sentido isso... Mas, pera, daí será que não é foda pra ele manter a amizade porque ele me acha um ignorante fracassado? Sim, eu sei, mas mesmo assim ele mesmo deve achar o livro uma merda gigante, do tipo que só lê quem não sabe ordem alfabética e tem que se contentar com os livros que ficam na entradinha da livraria. Pô, mas será que ele me acha burrão assim? Tá vendo? Já entrei na paranoia aqui: eu sou tão burro que nem perceber a minha ignorância eu consigo, aí fico achando que a culpa é da Dona Josi. Li um livro e saí achando que era o pica, aí o Otávio vem e me bota em perspectiva... Talvez eu devesse sair mais com ele, mas o foda é que ele não sai... E não tem muito assunto também, ficar falando pra sempre da infância e da adolescência? Porque falar do trabalho com ele chega a ser humilhante — mas, bom, já deu o tempo, fica pra semana que vem isso aí mesmo. Sim, e vou pensar naquilo que você falou com nome bonito e tal — qualé que é, mesmo? Tópico, utopia do outro, sei lá — enfim, de considerar o outro e ter empatia e tal, vou pensar mais nisso. Até semana que vem.


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