19ª Sessão
Boa tarde, tudo bem? Aqui, o cheque da semana passada também. Difícil isso de você não me cobrar, já disse que não me importo, às vezes mais parece um teste ou coisa do tipo. Ah, de caráter ou honestidade, algo assim. De todo modo, acho que passei.
Bom, hoje eu queria falar sobre o que tô decidindo pra vida. Porque eu também não ia sair daqui e, do nada, largar tudo e mudar de vida completamente, né? Tô me preparando ainda, me organizando. Por exemplo: tava pesquisando uns lugares pra morar, pra sair de casa mesmo, sabe? Cortar os laços, conquistar minha independência. Dei uma olhada também nuns editais de concurso e tudo o mais, devo dizer que fiquei interessado.
Ah, qualquer um que pague bem já tava legal, mas o de promotoria tem a coisa da segurança, né? O status. Sem contar que o meu pai (coitado...) ia ficar feliz, seria um sonho realizado para ele...
Falo, falo sim. Até conversamos no sofá um dia desses. É dura a coisa com ele, mas sei que a vida foi sofrida, pai alcoólatra (ou melhor, é alcoolista que fala agora, né?), vida de sítio, talvez um abuso ou outro, mas acho que só a infância merda e a vida militar já são razão o suficiente pra ele ter acabado como tá. Pelo menos não é de beber, o que, pra mãe, já é uma bênção de nosso senhor Jesus cristo.
Assim, não que ele seja inocente, mas o meu pai (tadinho) não é má pessoa completa, e eu sei que, do jeito dele, ele só quer o meu bem... A coisa toda da carreira e da faculdade, por exemplo, são maneiras que ele encontrou pra garantir uma vida de segurança pros filhos, que é uma coisa importante pra geração dele. E eu entendo isso. O que não dá pra entender é a coisa da mãe, agora, resolver me apoiar pro stand-up, logo que falei pra ela que desisti. Nunca deu a mínima, nunca nem pediu pra ouvir uma piada ou bit, e, completamente do nada, vem com um papinho de que tenho que fazer o que acredito me fazer feliz e o caralho a quatro.
Ora, me enfurece porque quando eu precisava de apoio ninguém falava nada. Pagar a terapia é um começo, mas não adianta muita coisa se a infeliz não tiver a boa vontade de vir falar comigo, né? É foda, às vezes me sinto como se ninguém me entendesse. E o pior de tudo é me ouvir dizendo isso, é saber que eu penso e me sinto desse jeito, e ainda assim achar ridículo, coisa de adolescente.
É claro que eu acho que tenho o direito de sofrer. Todo mundo tem, ninguém pode tirar isso de alguém. Mas, convenhamos: pra mim a coisa é fácil demais. É igual imaginar como seria, se ele por acaso fizesse, a terapia do Luigi, o irmão da Júlia, ou até do Juninho mesmo. Do que eles iam poder reclamar? Os dois têm tudo o que quiserem num estalar de dedos. Com mil pessoas dispostas a fazer tudo por eles, a salvar a pele dos dois mesmo que custe a própria vida ou uma fortuna. Já a minha terapia acaba sendo cara, demorada demais...
Eu tô de saco cheio, sabe? Ah... de ter que dar satisfação pras pessoas. De sentir que eu não tô fazendo as coisas por mim mesmo. Eu tô decidido agora a conquistar minhas coisas por mim mesmo. É essa a chave da questão: "fazer as coisas por mim mesmo." E é claro que nisso, volta e meia, vão entrar fatores externos (não dá pra ser tão idealista), mas, no grosso da coisa, vou fazer o que eu realmente quero.
Ah, no momento, o que eu realmente quero é poder viver a minha vida sem dar satisfação pra ninguém, sabe? Conquistar a minha liberdade, o meu lugar no mundo.
Olha, você me chateia um pouco quando pergunta sobre isso ou só toca nesse assunto. E, na maioria das vezes, eu acabo deixando passar, volto pro tópico que tava falando, respondo a uma parte só da pergunta, mas hoje não dá. Por que você insiste tanto nisso? Eu sei que não é algo explícito, mas parece que não tá me ouvindo. Assim, não literalmente, é claro que você senta aí e me ouve toda semana etc. e tal, mas é como se não conseguisse entender o que eu... o que eu tô querendo dizer, entende? Porque eu sei que o seu trabalho é meio que ir me guiando no processo e na coisa toda de desenvolver a tal da minha narrativa e tudo o mais, só que eu não aguento mais nem isso. Eu não tô aqui pra provar nada pra ninguém, entende? Eu tenho a minha própria vontade, e por mais que você me dê a entender (muito sorrateiramente, por sinal) que a coisa do meu irmão é importante, os meus textos, o stand-up e tudo o mais, o que eu quero agora é só provar pras pessoas que eu sou eu, e elas, elas. E ponto final.
Para de insistir, por favor, eu tô pensando seriamente em simplesmente me levantar e ir embora. Ou melhor, tá bom, então, quer mesmo que eu fale? Vou falar então: eu não penso sobre a morte do Pedro e, quando eu eventualmente penso, o que eu acho é que talvez eu seja uma pessoa ruim só porque não choro e aí parece que eu não me importo o suficiente. A verdade é que, talvez, eu não me importe mesmo o suficiente. Ele tá morto, acabou. Não vou passar a vida igual ao meu pai (o pobre coitado), que não tem coração o suficiente pra lidar nem com uma dor nem com um amor real; ou como a Mãe, que só sabe rezar e culpar deus e o mundo por tudo o que acontece na vida dela. Porque, conhecendo o marido que tem, se tivesse sido mais esperta e se divorciado antes, ou ao menos se prestado a falar com o filho ao invés de ficar reprimindo o moleque, talvez ele não tivesse se matado, e eu pudesse ter feito um intercâmbio sem me sentir culpado por ser feliz enquanto tá todo mundo triste no seu canto sem se preocupar comigo. E vai ver isso até ajudava o Juninho a não virar um merda, igual ao meu pai (o infeliz), que no fim das contas é quem menos tem culpa na história inteira, porque é a única pessoa de quem todo mundo sempre soube tudo, e a única pessoa a nunca dissimular ou omitir alguma coisa. O meu pai (coitado) só não tem como se expressar, a Mãe podia, se quisesse, mas escolheu ficar na sua passividade cristã a vida inteira e agora quem paga por isso somos nós... Pronto, tá mais feliz? Me espera p-parar de chorar agora.
Eu não, eu definitivamente não tô mais feliz, nem aliviado, nem nada do tipo. Ora, porque isso tudo eu já sabia. E você também, só queria que me confessasse. Me sinto uma personagem de teatro, às vezes, quando venho aqui. É como se você me usasse pra expor em mim um ridículo que faz a plateia toda rir, agoniada, e eu só sou capaz de imaginar as pessoas rindo de mim. Mas eu vou provar pra elas que sou capaz de fazer as coisas por mim, fazer o que eu quero, porque eu quero. Vou realizar meus sonhos e provar pra elas que eu consegui por mim e, acima de tudo, por minha conta (E nem venha me dizer que isso é contraditório, porque não é! São coisas diferentes e você sabe muito bem disso).
E, olha, antes que a gente acabe se ofendendo, eu tô muito exaltado, já tá acabando mesmo, vou só me despedir e a gente conversa melhor na semana que vem, tá bem? Hoje eu já não tô mais com cabeça pra lidar com isso. Bom, desculpa qualquer coisa, conversamos tudo certinho semana que vem.
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