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EX NUNC, um romancete - 14ª Sessão

  • Foto do escritor: Algum Lucas
    Algum Lucas
  • 19 de mar. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 21 de abr. de 2020

14ª Sessão


Olá, boa tarde, como vai? Ah, eu vou daquele jeito, sabe como é. Aqui, papéis, cheque, pronto, hoje não me esqueci. Então, tô bem, bem frustrado mesmo, na verdade. Ah, porque eu já falei disso aqui antes, e com a coisa toda da Júlia tá bem difícil. Sinto como se cada vez que algo me importuna no trabalho fosse ser a última, que eu tipo vou surtar, sabe? Ah, nada específico, só o de sempre que agora já tá pra lá do limite da minha paciência. Juro, se eu tivesse uma arma, o Haroldo já tava em sono profundo. E o Pedro Couto também, aquele filho da puta. Enterrava numa vala e só escrevia uma coisa numa plaquinha de madeira: "ZÉ". Meio assinatura, meio nome daquele Zé-ruela maldito.


Tava pensando antes de entrar hoje, acho que preciso falar aqui se algo me fez chorar e tal, né? Enfim, desde aquela semana que terminei com a Júlia, eu tento ligar pra ela, passo na frente da casa dela às vezes e tal, mas nada. Não me atende, nunca a vejo descendo do carro, nem no horário normal e tudo o mais. Parece que desapareceu. Deve estar adiantando ou mudando mesmo todos os horários pra eu nunca conseguir esbarrar nela (ou "pra que eu nunca consiga esbarrá-la"? Tem coisa que fica tão esquisito tentar falar certinho. Pareceu meio escatológico, né?).


Ah, o pior é que não me sinto tão triste como me sinto maluco, sabe? Então, é que essas coisas me deixam numas paranoias muito mirabolantes, mas, no fundo, no fundo (se bobear bem na superfície, na verdade), eu bem que acredito às vezes. Ah, de que ela na verdade nunca existiu e que, se existiu, era tipo a minha cuidadora, porque eu na verdade sou um mega deficiente e todo mundo é condescendente comigo por uma mistura de desprezo e dó, sabe? Tipo, isso explicaria a minha vida toda, na verdade. O porquê de terem me zoado desde a escola, o porquê de eu precisar vir aqui, o porquê do Pai ser tão indiferente comigo, do Pedro não ter achado que podia falar comigo, de ser tão esquisito pra tanta gente a Júlia me namorar, essas coisas. E vai ver o Otávio só parece inteligente pra mim, que não consigo perceber; aí, no mundo "real", ele é só um cara x que teve muita dó de mim e quis fingir que é meu amigo e tal.


Assim, claro que eu não acredito no sentido estrito do termo, mas não posso negar que não contemplo a ideia de vez em quando. Me acho bem são, até. O problema é que às vezes isso não me parece suficiente... Ah, porque não adianta nada eu ser são se tudo o que isso me faz perceber é o quanto eu sou um merda. Tá bom, te dou um exemplo: hoje, eu queria vir aqui e já de cara confessar que tá impossível parar de fumar, que eu sinto como se nunca fosse conseguir, mas não quero aceitar isso, sabe? A mesma coisa com o negócio todo de escrever e ser escritor e tudo o mais: não vai rolar. Já tô fazendo as pazes com a ideia de que não tá dando mesmo e é isso aí.


Bom, em primeiro lugar, porque eu sou muito ruim. Sério, sei que você não vai (e nem deve poder dizer nada a respeito), mas eu sou um lixo. E o pior de tudo é que eu sei bem disso. Talvez essa seria a parte boa da minha paranoia ser real. Ué, porque ali ao menos eu não teria por que me sentir responsável por isso e tal. Nossa, soou muito pior do que eu esperava, mas, fazer o quê? É isso mesmo. Lá, eu ao menos podia fazer as vezes de coitadinho e ficava tudo dez, show, mil, top, como preferir.


Ah, e em segundo, porque meu sonho mesmo é o stand-up, e não dá mais pra ficar nessa. Mas é a mesma coisa que o cigarro (finalmente chegamos aqui, parece que vou me enrolando e enrolando até não me lembrar mais do que ia falar, cruzes). Eu paro por um, dois e às vezes até três dias, e volto. E sempre que volto é aquela coisa desesperada. Como se não tivesse salvação e o jeito era mesmo fumar pra caralho, e eu de repente entro num frenesi descontrolado de fumar. É como se eu tentasse compensar pelos dias que eu não fumei, sabe? E o esquisito também é que não me dá nem tempo de pensar algo do tipo "nossa, que dloguinha, fumei um tigalinho, agola vol tel qui começal do zelo, ti titica ti calinha!" Não faço isso, eu simplesmente fico me odiando e desconto no cigarro. "Fuma mesmo, seu merda, não consegue nem três dias, tem mais é que se foder mesmo, vai morrer de câncer, seu filho de uma puta."


Desculpa, não era pra soar tão escrachado, mas se você riu deu pra entender a mensagem. E falo comigo nesse tom mesmo. De comediante ruim imitando malandragem. E fica nisso. Eu acabo que fumo, rindo e com ódio, e nada se faz a respeito. Até que se passam mais uns dois dias, em que eu fico mega triste, frustrado pra caralho, me detestando, aí vejo alguma coisa na internet, na TV, etc. etc. e decido "mudar de vida pra melhor!" "Agora vai ser diferente!" "Porque naquela vez eu não x, nem y" e blá blá blá, blé blé blé, dois dias depois eu tô fumando de novo. E isso vem acontecendo tanto...


Eu sei, mas também posso pensar que, se eu desistir logo, nunca mais vou fracassar de novo, entende? Brincadeira de mau gosto... De todo modo, é assim que me sinto, e esse é o problema. Tenho todos esses sentimentos, toda essa vontade de fazer as coisas que quero, e nunca parece o suficiente, sabe? Eu dou duro por um tempo, começo meu romance e, na semana seguinte, encho o saco e deixo pra lá. Me bate um medo de virar alguém que vive de ilusões como o Pai, ou, ainda pior, como a mãe (tadinha), que nem sequer consegue imaginar algo além dos limites que deram pra ela.


Sim, e sabe o que é o pior? É que, de tudo, se eu paro pra pensar honestamente sobre isso, acabar igual ao meu pai nem me parece a pior das hipóteses, sabia? Claro que não é o que almejo nem nada parecido, mas é uma realidade, sabe? Se eu for um pai razoável e um marido normal, já tô no lucro. E também não é pra dizer que a vida é toda má e que não se pode ser feliz sendo comum, né? Assim, como eu falei, não é o que eu almejo, mas não me parece o fim do mundo, sabe? De qualquer jeito, quero continuar com a poesia, disso eu gostei, trouxe só um poema hoje, mas foi um que eu fiquei bastante tempo lapidando, sabe?


Não, não entendo muito bem essas coisas de ritmo e não sei o quê, acho que se você limita a poesia com umas coisas dessas você mata ela, né? Porque a poesia é pra expressar o que a gente sente de uma forma bonita. Se não, não tinha por que fazer arte ou coisa parecida, era só dizer, ou ir direto pra clínica psiquiátrica mesmo. Mas por hoje chega, espero que você goste do poema. Eu vou tentar passar dos três dias sem cigarro e acho que vou desistir mesmo dessa coisa de falar com a Júlia e tal. Bola pra frente. Não tenho a vida toda também pra correr atrás dela. Se acha que vai ser melhor sem mim, que esteja certa, né? Enfim, até semana que vem, espero ter um bit legal pra trazer, anotei umas ideias legais ontem. Pensamento positivo.




Anexo: Textos que Zé trouxe à 14ª Sessão




Como matar desculpas metempsicóticas?


Tenho uma doença autoimune da cabeça

e mesmo que às vezes possa não parecer

o que eu mais quero e desejo

é sentir que minha alma parou de doer.


Tenho a impressão de que vivo

sempre a um sinto muito de me perder.



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